Emília, 46 anos

Emília

Emília mora no Sítio Pá Seca, região rural de Macaparana.

 Carrega as experiências da vida com tranquilidade e serenidade.

 Aprendeu a costurar e fazer crochê. Ensinou à sua filha, Milene,

 o ofício que hoje as duas fazem sempre juntas em sua casa.

Emília colocou no mundo uma mulher muito desenrolada. Milene, que foi nossa porta-voz e braço direito durante a pesquisa, aprendeu a fazer crochê com a mãe.

Emília conversou conosco em sua casa, no Sítio Pá Seca, na zona rural de Macaparana. Na sala, sentada no sofá, debaixo do seu teto, nos contou sobre as lembranças do sítio, sobre como aprendeu crochê e costura, sobre como criou sua filha. Emília é uma mulher presente na rotina de sua casa, consciente do seu trabalho e parceira de sua filha com o crochê.

Narrativa

VOLTAMOS PARA A MESMA CASA

Eu sou natural daqui de Macaparana, não nasci aqui, mas nasci aqui no mesmo Sítio, só que lá embaixo, e com sete anos eu vim morar nessa casa aí da frente. Com vinte e um eu fui morar com meu esposo, aqui embaixo, perto da estrada que vai para um povoado que se chama Poço Comprido. Morei com ele lá dois anos, aí voltamos para a mesma casa, que foi aí que fizemos, que construímos essa casa aqui, e é aqui que nós moramos.

ERA UMA INF NCIA NORMAL, ESTUDAVA, AJUDAVA A CUIDAR DAS COISAS DA CASA.

Minha infância eu, como eu já disse, eu nasci morando lá embaixo. Vim morar nessa casa aí eu tinha sete anos de idade. A minha infância, eu era filha única. Eu era uma criança sozinha praticamente, não tinha irmão. Era uma infância normal, estudava, ajudava a cuidar das coisas em casa, só isso, não tinha nada de especial. Eu era mais sozinha, porque minha mãe era doente e vivia mais pelos hospitais. E era assim. Eu ficava com meu pai, e minha avó que morava aqui, mesmo aqui onde tem essa taperinha, nessa curva aí.

Brincadeira de boneca. Nessa época era brincar de boneca e só em casa, assim, não tinha negócio de estar…, não fui criada com amizade, de tá por casa de amiga, na casa de amiga, passar o final de semana, fui criada dentro de casa.

NÃO SOU REALMENTE CASADA NO PAPEL, MAS VIVEMOS JUNTOS HÁ 28 ANOS.

Sim, eu sou casada, desde os vinte e um anos que eu moro com ele, Josué. Não sou realmente casada no papel, mas nós vivemos juntos há vinte e oito anos. Tenho meus meninos. Tenho uma filha, só uma filha. Eu tive duas filhas, mas uma faleceu, e essa, Milene, é a segunda. Segunda filha. Nasceu já doente e faleceu com três dias de nascida. Isso foi antes de Milene. Milene nasceu com dois anos depois.

EU NUNCA ESTUDEI NA CIDADE NÃO

Eu estudei aqui na escola Paulo Fernando, aqui mesmo da comunidade de Pá Seca. É, e essa escola é antiga, viu? Essa Escola Mínima Paulo Fernando. Não, eu só estudei até a quarta série, só aí mesmo, eu nunca estudei na cidade não.

TRABALHO NA AGRICULTURA, CUIDO DA CASA, FAÇO MEUS CROCHÊ

Trabalhava na agricultura e ajudava a cuidar da casa. E depois de casada, continuo. Trabalho na agricultura, cuido da casa, faço meus crochê nas horas vagas. E é assim. Cuidava de bicho, hoje em dia não cuido mais, porque as coisas estão muito difíceis, aí os animais que eu tinha eu vendi. Também, era muita luta, não dava pra mim não. Já sou mais de idade, aí num dava pra mim não, fica muito cansativo. Agora mesmo, são os meus crochê e os afazeres da casa.

E planta no inverno, planta feijão, planta milho, macaxeira, planta fava. Não, planta para alimentação. Cuida de sítio de banana, mas também só pra alimentação, para ter em casa né? Dar aos amigos; que quando tem, a gente dá. A gente come, mas vender a gente não vende não, tudo é pouco, né? Só dá mesmo pro consumo da casa.

VOU LOGO CUIDAR DOS MEUS CROCHEZINHOS

Acordo, faço um cafezinho, faço o cafezinho da manhã, a gente toma café, ele [o marido, Josué] sai pra trabalhar, aí eu vou novamente pra beira do fogo, boto feijão no fogo, às vezes nem varro a casa, vou logo cuidar dos meus crochezinhos, aí mais tarde eu estou cansada, já com os dedos cansados, aí eu vou fazer os afazeres da casa, quando dá umas dez horas, aí eu paro e vou cuidar de almoço.

Depois do almoço, eu tomo uma folguinha, e vou pegar no meu crochê novamente. E, à noite, depois do jantar eu faço até umas dez da noite. E o marido dizendo: “mulé, vem dormir, mulé, apaga essa luz”. E eu pegada, “deixa eu fazer mais um pouquinho”. Porque às vezes a gente está com encomenda que requer prazo pra entrega, né? Quanto mais a gente adiantar um pouquinho de noite, fica mais fácil pra entrega.

A RENDA DO CROCHÊ

A renda do crochê na verdade me ajuda a comprar uma roupa, um calçado. Ou se eu precisar de comprar algo pra casa, se tiver necessidade eu comprar. Se eu precisar fazer uma viagem, eu ter um dinheiro pra fazer um passeio ou uma coisa assim. Só pra isso mesmo, não é pra despesa da casa não, é só mesmo para os meus gastos mesmo, pra não tá pedindo ao marido.

EU APRENDI COM UNS DEZ, ONZE ANOS

Com dezessete anos eu fiz um curso de costureira. Costurei por muito tempo, mas fazer crochê eu aprendi, como disse a minha filha, eu aprendi com uns dez, onze anos, eu aprendi com as minhas colegas, fazendo aqueles paninhos pequenininhos.

Com quinze, dezesseis anos, toda minha mãe me botou para estudar na escola de corte e costura, em Macaparana, e aí ela comprou uma máquina de costura, e eu costurei por muito tempo, mas como uma máquina já foi comprado, já usado, com bastante tempo que custa, ela ficou ruim, até que eu deixei para trás, e depois disse que não compreendi outra coisa mais. Aí, foi aí que eu ingressei na vida de fazer crochê.

Ela [a vizinha que a ensinou] sabia fazer saia, que era a sensação por aqui na região com uma saia de crochê. Ela tava fazendo, aí ela disse: “manda sua mãe comprar linha, que eu ensino a fazer”. Com o tempo foi que eu peguei uma ideia, já com outra vizinhança de fazer colcha. Aí foi que eu comecei a fazer colcha. Aí fez colcha, fez caminho de mesa, essas passadeiras. E lá pra cá eu não parei mais, sempre eu faço.

UMA MULHER ME DÁ O MATERIAL QUE EU FAÇO E RECEBO UMA QUANTIA QUE ELA PAGA

Eu faço por encomenda. Uma mulher me dá o material que eu faço e recebo uma quantia que ela paga. Ela dá um prazo que é para tanto tempo, aí eu lá vou trabalhar para prazo que ela precisa, entrega no prazo certo.

Eu não gosto de fazer prazo, não, porque também às vezes a gente tenta atrapalhar o tempo de fazer, aí sabe que tem aquele dia marcado, já é uma correria mais, eu gosto de fazer mais descansado, eu tenho minhas coisas de casa para fazer, né? Quando não tem prazo marcado, começo a fazer mais descanso.

ELA FAZ MAIS A FRENTE E EU FAÇO MAIS COMO COSTAS

É fazer com ela, com minha filha. Quando uma pessoa pega uma encomenda que tem mais pressão, uma faz uma parte e outra faz outra parte. Por exemplo almofada. Ela faz mais a frente e eu faço mais como costas, quando termina, termina tudo igual, aí está tão perto, pronto.

ACHA QUE É FEITO MESMO NUM SOPRO [...] LEVA TEMPO, LEVA A MENTE DA GENTE

O povo não valoriza porque, acha bonito, mas acha que é feito mesmo num sopro, não sabe que ali é feito de pontinho em pontinho, leva atenção, tem muita preocupação porque não tem muita atenção para fazer errado. Leva tempo, leva a mente da gente.

Apesar de ser um trabalho muito trabalhoso, né? Mas é muito barato, desvalorizado. Devia ser mais valorizado, porque, assim, o crochê é uma coisa que o povo não vê pelo valor do trabalho, todo o mundo que faz crochê, mas ninguém que tenha dinheiro para pagar. Ninguém tem dinheiro pra pagar, aí quer ter crochê, e cadê dinheiro para pagar? Aí vem uma história do calote que sempre aparece, aí vem uma história das perguntas, sua cobra quanto a peça?

EU FAÇO DEVAGARZINHO, ALI NO MEU TEMPINHO

Eu gosto. Apesar de não haver muita prática, assim, muita desenvoltura de fazer rapidez, eu faço devagarzinho, ali no meu tempinho. Mas que eu gosto. E tenho minha vista já bem, mais agravada. Mas eu gosto de fazer. Eu gosto de fazer meu canto, sempre aqui, ou aqui onde estão essas cadeiras no terraço. São os cantinhos que eu gosto de fazer. Gosto de fazer aqui, porque aqui eu vejo quem vem lá embaixo. Ou no terraço quando estiver no calor, faça no terraço.

MUITA RESPONSABILIDADE DE SER MULHER

Mulher é complicada, muita responsabilidade de ser mulher. É complicado ser mulher, é complicado ser dona de casa, é complicado ser esposa, tudo aqui requer um pequeno esforço para caber, até ter responsabilidade de tudo certo, na hora certa, para não deixar que falte tanto quanto algo, né?

Porque ela é a área de dom de casa, que mantém como tudo certinha, dá a área de esposa que mantém uma linha, que é a esposa de quem é casada, quem é de casa e vem com dificuldade de ser mãe.

Ser mãe não é fácil, ser mãe não é botar um filho no mundo, porque é mãe, não tem que ter obrigação de criar, educar, e filho é uma coisa que é para o resto da vida. Mãe também é pro resto da vida, que tem responsabilidade aqui. É uma coisa que tem um saber de responsabilidade e um saber levar aquilo, um a um. E junte os pedacinhos para dar tudo certo. Cada cá no seu lugar e no seu tempo.

TEM DIFICULDADE EM GANHAR POUCO, MAS É GOSTOSO

Artesã é bom, gostoso, tem dificuldade em ganhar pouco, mas é gostoso. É, artesã para mim é um trabalho, um divertimento e uma ocupação da mente. Enquanto alguém está lá pegada, ali trabalhando, está relaxando, não está pensando em outras coisas, por outro lado é uma renda que você pode obter. E uma ocupação, você não está aqui para fazer nada.

Faz, crochê me ajuda muito em muita coisa, faz parte. No dia que não tem crochê, fica um pouco vazio. Fica faltando aquela ocupação. Aquele tempo que a gente se ocupa do crochê, quando está faltando o trabalho, fica com o tempo desocupado, com o tempo vazio sem o saber de pessoas ou o que vai fazer nessa hora. Vai fazer o quê? Dormir, isso é o mesmo.

SAIA QUE FEZ PRA MILENE

Essa peça é criatividade minha, mas eu fiz de cabeça. A minha filha tinha quatro anos quando eu fiz essa peça. Essa foto que está na parede. Era um conjuntinho, era saia e blusa. Tá é sujinho, que tava por ali dentro das gavetas, mas eu não dou o fim não.

OIÁ, EU VOU FAZER UM TESTE DE CROCHÊ

Quando ela [Milene, sua filha] teve onze anos, eu disse: “oiá, eu vou fazer um teste de crochê”. Aí eu comecei. Passava uma novela na Globo, Beleza Pura. Era eu ali fazendo meu crochê, e ensinando a ela. Só quem eu estava fazendo, e com quem? Com essa parede. “Olha, menina, você coloca aqui, ói, passa na agulha e coloca aqui”. E eu falando, e quando olha para ela, chaga tava de boca aberta olhando para televisão. Aí eu usei: “presta a atenção no que eu quero dizer”, e tomo um croc na cabeça. Mas, graças a Deus, eu não fiz por maldade.

HOJE ELA É UMA CROCHÊ DE MÃO CHEIA, MELHOR DO QUE EU

Hoje ela é uma crochê de mão cheia, melhor do que eu. Porque hoje ela faz roupa, hoje ela faz biquíni de praia. Faz conjunto de cozinha; do jeito que você pedir, ela faz. E eu não faço. Quer dizer, eu faço o básico, mas ela hoje é atraente, hoje ela vê como coisas na internet e ela faz. Minha inteligência não dá e minha vista também não é para tirar o gráfico que ela vê, fazer o jeito que ela tira eu não tiro. Quer dizer, o esforço que eu fiz foi válido. Hoje em dia eu sou satisfeito por ela ter aprendido, porque hoje ela faz muito melhor o que eu. Valeu, ela levou os crocs, mas hoje é através do esforço que eu fiz por ela que ela ganha o dinheiro dela, né?