J., 61 anos

J.

J. e sua filha trabalham de tempos em tempos para a fábrica pegando encomendas, mas J. gosta mesmo de inventar pontos, usar linhas diferentes e coloridas. Abriram as portas de casa para conversarem conosco.

Por Luiza Maretto

Seguindo a rua, no canto esquerdo do quarteirão, subindo a escada que faz beirada com o muro, ali, bem ali é a morada de J., de sua filha e de sua neta. Mulheres que trabalham, mulheres que contam, mulheres que sustentam…sabem fazer renda.

Dona Ana Alice faz o encontro acontecer e elas abrem as portas pra gente conversar. Dia de chuva e de frio. Sentamos no sofá da sala, e a pequena neta transita silenciosa e curiosa entre nós. Conversamos, pra esquentar.

Os pontos de J. são apertados, miúdos, fazendo a ponta da renda acontecer. São mulheres que vendem seu serviço e fazem renda para a fábrica de Poção. Dentro de casa, dentro da cidade de Poção, contam. O quintal delas é grande, cheio de árvores. E do interior, contam. Contam sobre o ponto da ponta que sabem fazer. E fazemos contas, do valor do trabalho vendido. Pouco, muito pouco, e isso toca, aperta. Escutamos ainda conto de valor sobre o trabalho que fazem, a vida que vivem. Nada disso é pago em dinheiro. Não é pago. Tem de ser troca, a todo momento.

Sabem nos receber. Sabem chegar na casa de qualquer um. Sabem sobre a própria história. Sabem fazer renda. Sabem sobre trabalhar. Sabem abrir. Sabem criar pontos. Sabem de coisas que importam. Sabem muito. E ensinam umas as outras. E nos ensinam sobre o chão que faz a cidade, um estado, um país. O corpo delas sustenta.

Estão ali, na cidade de Poção e fora dali? Suas rendas são feitas ali. E vão pra onde? Não sabem. Isso elas não sabem.

E muitas rendas que fazem estão guardadas em seus armários. Mas continuam ramando. Para quem vender? Elas são das poucas mulheres que conversamos que vestem roupa com detalhes de renda, feita por elas mesmas. E nos recebem assim, arrumadas e vestidas com renda. E abrem as rendas guardadas para nos mostrar a mistura das invenções, de experimentações rendadas. Ponto singular de J.. Ponto seu. Cores misturadas, linhas de outros lugares, trazidas para ali, para criar. Não é valor de venda não. É de outro valor que estamos falando… Valor. Vida. Respeito. Valor de vida. Sem medida, coisa feita à mão. Como sustentar a vida? A vida criativa? Resistir. Renascer. Luta. Todo dia, criando, cada passo do artesanato, do cotidiano.

“Me criei trabalhando…”, diz J. Todas elas. Mulheres, artesãs.

Elas também nos escutam com bastante atenção. Quem somos, de onde viemos, e o que é essa tal de pesquisa. Cada cabeça um trabalho diferente, um fazer. E temos várias formas de dizer, detalhes importantes pra ver. Escutar, reparar. Termos de compromisso, dúvidas, palavras, imagens. É de muito mais que papel, muito mais que estamos falando. Olhar de canto de olho e de olho inteiro. Perto, longe. O perto sabe? O longe embaça? O longe engana? A cabeça de longe, é diferente. Como trocar? Elas nos ensinam que é preciso conexão de sinceridade. Abertura de outros espaços dentro pra conversar. Querem entender pra poder participar, valorizam o nosso trabalho, querem saber. Oferecem cadeira pra gente sentar, café, biscoito e o que sabem com gentileza, abertura. Viemos de vários lugares e a vida nos une para a troca. Atropelos, cansaços, muita coisa no nosso percurso de encontros. E essas mulheres nos acolhem, nos abrem… E precisamos descansar, dentro, pra trabalhar, pra escutar. Palavra, imagem, ramagem. Gente diferente disponível pra conversar, gera encontro. Para fiar com, tem que ter coração fazendo junto. O que é, o que se vive. Casa, coração que escuta e pode falar, com qualquer um.

Dar vista pra vida, pra criação, do saber que se tem em todo canto. Dar na vista a ponta, o ponto de cada uma. Pra caminhada, é necessário olhar pra terra.

A fotografia registrada é de J., e das três também, pra colocar na parede da casa. E os sorrisos bonitos estão presentes! Porque importa muito, o rosto delas, a vida delas, seus sorrisos, o que elas fazem. E uma enorme gratidão pela abertura das portas, da vida, das histórias! E um grande respeito pelo fazem e sabem.

Narrativa

Já morei em muita (casa) aqui em Poção

Eu nasci em São João do Tigre. É Paraíba, né? (Tive) Uns quinze (irmãos). Nós não foi criado junto. Eu fui criada por Zé Liberato. (Pai) de criação, né?

Eu me casei aqui em Poção, sabe?, mas eu ainda morava nesse Serra do Paulo, ainda. Depois que eu me casei, vim morar em Poção. Nós passou uns tempo lá casado, aí depois veio-se embora pra cá. Eu já morava em outras casa lá pra cima. Já morei em muita (casa) aqui em Poção.

Era, na roça

Eu vim estudar eu já tinha uns cinquenta e pouco. Eu já era mais velha, eu já tinha meus cinquenta. Era, na roça. Limpando mato. É… arrancava feijão, apanhava fava… é, plantava mamona.

Ele (o marido) trabalhava (na roça) no povo. Assim, num canto e em outro, não sabe? E arranjava um servicinho, e ele ia trabalhar.

Eu ensinei ela pequena (a filha). Puxava mais pro roçado, porque nós precisava, pra comer alguma coisa, né?, um bocado de feijãozinho pra comer. Que se for renascença mesmo não dá pra ninguém viver, não. Só pra quem compra. É, pra quem compra… pra a gente (que faz) mesmo é sofrido.

Eu aprendi (renascença) eu já tinha mais de vinte

Eu aprendi (renascença) eu já tinha mais de vinte. Aprendi aqui em Poção mesmo. Aprendi com as sobrinha da minha mãe. Sim. Maria (de Odon), outra irmã dela, me ensinava.

Passei um mês e quinze dias (pra aprender). “Dois amarrado” (foram os primeiros pontos). Quando eu já tava perto de sair eu aprendi atrás, saí aprendendo, mas muitos ponto aí aprendi, assim, vendo os outros já fazendo. Aí aprendi já sem ninguém me ensinar.

Comecei a trabalhar pra mim mesmo

Aí comecei a trabalhar pra mim mesmo. Fazendo muito jogo. Eu fazia muitas coisinhas, não sabe?

Ela (a filha) não trabalhava muito, não… assim, nos trabalhos de renascença… que eu deixei o pai dela, não sabe? aí nós ficou trabalhando, mas mais no roçado. Com o tempo foi que eu ensinei a ela, e nós trabalhava. Aí ficava tudo trabalhando na renascença, pra viver.

Foi quando eu vi que dava pra ela aprender, eu ensinei. Ela aprendeu rápido. Ela viu eu fazendo, né?

Era na feira. Não trabalhava pra esse negócio de fábrica, não

Nós fazia e saía num dia de sexta feira, nós saía um rebanho de pés, minha filha, pra trazer pra vender na sexta, né?, ou vender na sexta ou no sábado bem cedo, mó da feira.

(Vendia) Jogo, joguinho, passadeira. Era na feira. Não trabalhava pra esse negócio de fábrica, não. Acho que não tinha, não. Era até bonzinho (Na feira) . Nós até que vendia mais rápido. Nesse tempo não era tão ruim que nem agora, não.

Agora não sei lhe explicar se vinha gente de fora, porque nós não tinha conhecimento com os pessoal daqui, né? nós morava no sítio, né? Quando nós chegava tinha muita gente comprando, ai nós vendia às pessoa. Mas tinha gente que comprava daqui também, só que eu não tinha conhecimento com essas pessoa, só sabia que era daqui.

Eu acho que, assim, faz tempo que a fábrica vem dando e a gente não pegava, não, não sabe? nós sempre fazia, assim, as pessoa que dava renascença, que nem Paulo de Ceço, eu trabalhei muito pra ele. Coisa de bandeja eu fiz muito pra ele. Pedaço de toalha que ele dava. Mas ele deixou, não sabe? Porque quando chegava o final do ano ele parava um bocado de gente. A gente com precisão, ficava com a cara pra cima. Ele parava a gente. Aí, quando dava mais uns tempo, começava de novo a dar de novo. Eu trabalhei pra uma mulher chamada Solange. Tinha hora que era por novelo, tinha hora que era por conta de nós mesmo comprando.

Eu gosto de inventar meus pontinho

Eu mesma eu gosto mais de trabalhar por minha conta mesmo. Eu gosto de inventar meus pontinho. É, minha filha, tem muitos anos que a gente mexe com esse negócios de renda.

É, assim, as mulher gosta de dar os risco, os desenho já. Entrega esse risquinho, aí a gente compra o material e vai fazer.

É o que eu faço tudo da minha cabeça mesmo. Tem pontinho “xerém”, tem “dois amarrado”, tem mais vários ponto, não sabe?, tem “abacaxi de dois”.

Não pode mudar de ponto (na fábrica)

(Na fábrica) É, eles diz assim pra fazer amarrado, todo amarrado, não sabe?, não pode mudar de ponto (na fábrica), não. Eu mudo de ponto quando é pra mim mesmo, mas sendo de… pode não.

(Na fábrica eles falam pra os pontos serem) Bem feitinho, assim, que tem o pontinho pequeno, tem o ponto grande. Aí o grande eles (da fábrica) não gostam muito. Tem que ser o ponto pequeno.

De dia é melhor que a gente vê mais mió

Minha coluna dói muito, aí eu não consigo passar o dia todinho trabalhando nele, não, sabe? Eu paro, e dou umas volta por dentro de casa, e dou umas volta no quintal, aí descanso meu pescoço, aí volto de novo pra trabalhar, não sabe? aí faço serão de noite.

De dia é melhor, né? Eu trabalho de noite, assim, pra… mas de dia é melhor que a gente vê mais mió.

Eu fui fazer a conta: se for pra comer, morre de fome, minha filha...

Minha fia, olhe, eu fui fazer a conta: olhe, se a peça der sete coisinha desse (borda de camisa), vai sair por vinte e um real, tá vendo? E teve uns tempo pra trás que pagava as peça a quarenta, a cinquenta, mas, nuns tempo desse pra cá, virou, a renascença.

Você faz a conta: vinte e um. Aí você vai de novo, compra uma peça de lacê, um novelo de linha, quanto é que vai ficar pra pessoa? Você vê como é pouco demais. Se for pra comer, morre de fome, minha filha…

Clara: Então, em três dias, tu ganha dez reais.

J: Pois é, minha filha.

Clara: Três dias de serviço, né?

J: É. Assim, quando tira o desconto, o que a gente fica é esse.

Clara: Antes, tu disse que venderia essas sete peças por uns quarenta reais, é isso, é?

J: É.

Clara: E agora vinte e um.

J: É, tá vendo o tanto que diminuiu, a coisa?

Clara: E não era muito também, né?

J: Um trabalho, assim, na mão, né? Hoje em dia tem quem faça por sessenta, né, G. (filha)? Tem gente que pagava novelo de quarenta reais. Agora baixou pra trinta, de trinta já tá por vinte e cinco, pra desmanchar, assim pras pessoas pegar o lacê e aí linhavar e mandar a pessoa fazer, entendeu? A gente vai ganhar livre, tudo pr’aquela pessoa. Tem gente que tava pagando esses preço, mas agora já tá até a vinte e cinco pra desmanchar um novelo de linha, tanto que abaixou.

É, pega risco lá na fábrica... “ave maria, uma encomenda dessa eu não quero, não”, “apois leva se quiser”

É, pega risco lá na fábrica… eu mesmo não tô indo, não, que uma nora minha que tá pegando pra nós, não sabe? Ela, a mãe dela, que a mãe dela faz muito tempo que trabalha pra essas fábrica. É duas fábrica que ela trabalha. Assim, que, quando tem uma que para às vezes, ela já tem a outra lá. Se você for lá, e elas dão o risco, e você achar que tá barato e não quiser, eles também não adula, não, não sabe? Aí, se você for outra vez, eles não dá mais. Aí tem que pegar. Se for bom, você tem que pegar. Se for ruim, tem que pegar. Que tem hora que vem umas bonzin. E tem outras que eles dão umas encomenda grande, que a gente diz: “eita, lasquera da muléstia”. Mas tem que pegar, não sabe? Ela lá pega. Ela quando vai pegar os desenhinho, ela tem que pegar. Que se ela disser assim: “ah, não”, que tem mulher que diz assim: “ave maria, uma encomenda dessa eu não quero, não.”, “apois leva se quiser”.

Se você não fazer força, não trabalhar mais, só vai ganhar aquilo mesmo

Ah, minha filha, se fosse só da renda já tinha batido as bota. Você vê o que sobra. Dentro de uma semana, se você não fazer força, não trabalhar mais, só vai ganhar aquilo mesmo que você fez a conta. E, aí, dá pra fazer o quê?

O trabalho que tem é nessas fábrica, né? as pessoa trabalha lá, mexendo com linho, cortando essas coisa, não sabe? E nunca mexi mão, pra lá, não. Eu sei que as meninas vai, pega esse risquinho, aí vê, chega pra ali, vai passar lá, passa, senão vai a pé, pra poder receber o dinheiro. Tem que assinar um papel.

A gente passa pras meninas (o trabalho que a fábrica pediu). Elas que dá o risquinho (da fábrica) e ela mesmo resolve (pega o pagamento na fábrica). Tem hora que nós têm que dar um agradinho a ela, que ela fica rodando até bem tarde pra lá, uma besteirinha pra ela pra ela comprar alguma besteirinha, né?

Eu mesmo eu compro, assim, besteira, não sabe? (com dinheiro que ganha fazendo renda renascença) compro, assim, perfume, uma roupa, umas coisinha besta que a gente compra.

Clara: E tu gosta de fazer, J.?

J: Gosto. Eu gosto.

G. (a filha): Eu vou ensinar a ela (a neta de J.). Ela vai aprender, se Deus quiser. Porque ela tem que aprender alguma coisa, né?, de artesanato, que nem a mãe dela, não é? Eu aprendi novinha…

Arrumar a casa, tomar café e fazer essa renda

O que eu faço é arrumar a casa, tomar café e fazer essa renda. Paro pra almoçar… aí almoço, ajeito as coisa e vamos trabalhar de novo. Quando é de noite, vamos jantar… Vamos lá pra dentro dos quarto, mó do frio agora.

Sempre nós duas (ela e a filha) mesmo. É, só nós duas mesmo. Nós ri. Nós diz brincadeira uma com a outra. Dá uma risada que eu desando com ela. Dá uma risadona.

Eu invento essas coisa diferente quando é pra mim mesmo, não sabe?

É, quando dá vontade, assim, eu faço essas coisinha (pra ela mesma), essas besteirinha. Negócio, assim, de blusa de renascença mesmo eu nunca quis fazer não, sabe?, pra mim mesmo usar não, sabe?, porque é preciso ter a pessoa que lave, que passe ferro pra ficar bonitinha, não sabe?, essas coisas grande é complicada. Você sabe, né? que tem as lavadeira de renda?

Eu invento essas coisa diferente quando é pra mim mesmo, não sabe?, mas na fábrica só gosta mesmo de “dois amarrado”. “Dois amarrado”, a “sianinha”…

nós mulher somo muito guerreira Trabalhar é tudo

(a filha fala:) Ah, nós mulher somo muito guerreira, né? Nós trabalha pra depender de nós mesmo, que depender de homem não dá, né? É bom a gente trabalhar pra a gente ter o próprio trocadinho da gente, né?

Porque a gente só tem alguma coisa se trabalhar, né? Né assim? Trabalhar é tudo. Tem gente que não gosta muito de trabalhar, não, né?, mas eu gosto de trabalhar. E eu vou viver pelas casas? ( A gente) Se orgulha, né? Tem esse trabalho pra nós.

Enrica só os outro e nós faz que eles não vão pagar o que a gente quer Nós sabe que tá enricando aos outros

Que é uma coisa feita na mão, né?, assim… Agora, lá fora, os pessoal não… pensa que é outra coisa mais fácil, né? Aqui sabe que isso é uma coisa que… aí aqui mesmo podia dar mais valor.

Tem gente que fala aí na rádio da renda daqui de Poção, muita rendeira, a terra da renda, né?, tem um pessoal que fala.

Eu acho que tem (futuro), viu? Porque tem muita gente que têm as coisa e é tudo de renascença. Eu conheço umas pessoa aí que são bem de vida, né?, e vive de renascença.

É que eles dão pras pessoa fazer e eles vão pro meio do mundo pra vender e lá a nota que faz, né? A pessoa compra um vestido de casamento, de noivo, aqui, o caba faz o quê?, na faixa de dois mil, não é, G.? Dois mil, dois e pouco. E chega lá fora e vende o quê?, por dez, por até mais. É muito que vende lá fora, que eu já ouvi falar que é bem caro lá fora.

É… nós faz… nós se lascou de fazer. Enrica só os outro e nós faz que eles não vão pagar o que a gente quer. É, tá enricando os outro. Nós sabe que tá enricando aos outros.