Léia, 42 anos

Léia

Léia mora em Lagoa do Carro, mas trabalha pra fábrica de tapetes em Camaragibe. Aprendeu fazer tapete ainda criança com a família. No início, trabalhava para Teresinha Lira enchendo e desenhando as encomendadas da mesma fábrica. Ela hoje é a ponte entre a fábrica e as tapeceiras de Lagoa do Carro, como Teresinha Lira foi um dia. Escolheu conversar conosco enquanto trabalhava na casa de Maria.

Por Luiza Maretto

A última mulher a encontrarmos em nossa caminhada por Lagoa do Carro, a primeira a gravar sua narrativa.

Perguntando nas ruas, parando nas casas, assuntando com vizinhos, acompanhadas do morador-motorista que nos guia. Buscamos, porém o caminho não é certo, já dado. Enfim chegamos numa rua com galinhas e bois, arrodeada por uma grande fazenda. E encontramos com Léia, assim, desviando do rumo planejado. Em sua casa, fazendo seus afazeres, com uma caneta pousada em sua roupa, Léia nos convida logo para entrar. Cheia de tapetes em sua varanda e em sua sala, tudo na vista de quem passa por ali, ela conversa conosco e a convidamos para contar mais sobre sua história. Como a gente quer conversar sobre o seu trabalho, ela aceita. Marca no outro dia, cedo, na casa da tapeceira Maria, onde estarão mais mulheres trabalhando, numa encomenda de um tapete. Ela diz que assim será melhor conversar, juntas, mostrando como é feito o trabalho delas, mulheres, no cotidiano.

No outro dia estamos todas lá no movimento no bairro, um carro pipa ao lado, música alta tocando e teste de som, gravador, roteiro de perguntas: ”qual será o melhor jeito da pesquisa acontecer?” E ela vai acontecendo, com ou sem roteiro… Léia traz seu trabalho consigo e o estende para começar a encher com as linhas, com seus valores, com suas histórias. No terraço da casa de Maria, sua companheira de trabalho, em frente à praça, as tapeceiras vão chegando mais e mais.

Léia nos mostra seu caderno de anotações e responde animada e atenta a nossas perguntas todas! E explica dos pontos aos desenhos, sobre seu trabalho na fábrica, sobre seus caminhos na vida.   Léia sabe bem sobre o seu fazer e nos mostra tudo que sabe. Todos os dias ela está ali, de corpo presente, em seu trabalho, sua vida. Mulher que faz. Mulher que trabalha.

Nós estamos ali naquele dia também, trabalhando, vivendo, sentindo os encontros, os pontos e os questionamentos da pesquisa que estão apenas começando. As linhas que estão sendo marcadas, inventadas.

Na frente da casa, com um largo sorriso, Léia se despede. Nós também. Sentamos na praça esperando para ir almoçar. Dia a dia de trabalho.

Narrativa

Escola, tapete, brincar, essas coisas de criança mesmo

Nasci aqui mesmo em Lagoa do Carro, nascida e criada até agora. Quando eu pequena, sempre existiu o tapete e era escola e tapete. Eu comecei a fazer o tapete cedo, não lembro a idade que eu aprendi, mas que entre sete oito anos eu já fazia tapete, e pronto, minha infância foi essa, colégio, tapete, a casa cheia, minhas irmãs, mãe e tudo fazendo e só.

Eu perdi assim a minha mãe cedo, sete anos de idade, aí meu pai casou novamente, né? Segunda esposa dele, aí eu tive assim uma infância… não tenho muito o que dizer da minha infância, era mais isso mesmo: escola, tapete, brincar, essas coisas de criança mesmo. História assim eu não tenho.

Meu dia-a- dia é normal

Sou casada, tenho dois filhos, trabalho, quer dizer, trabalho fora aos vinte atrás, mas em casa sempre trabalhei com tapete, com artesanato, e com essa turma, pegando os tapetes e passando pras meninas. O que eu faço agora eu já fazia antes de trabalhar lá.

Dentro de casa (moram) eu, meu esposo e meus dois filhos. Um tem quinze e o outro tem onze. Eu sou casada há uns dezesseis anos.

Meu dia-a- dia é normal, eu passo… os dois dias que eu tô fora, que eu saio de manhã e chego a noite, o pai no momento agora que tá desempregado, cuida das coisas dos meninos, minha irmã que mora perto prepara a comida e os outros serviços domésticos sou eu mesma. Ele me ajuda muito nas correrias dos tapetes, né? Enquanto quando tá sem trabalho. Leva tapete na casa de fulano, uma lã… Nos meus corre-corres. A renda certa que tá entrando é a minha.

Não lembro como foi que eu aprendi

A minha madrasta também fazia (tapete) com Teresa (Lira), mas aí quando minha mãe faleceu eu tinha sete anos, então as minhas irmãs mais velhas e com a minha mãe a gente já fazia com Teresa Lira. E, continuamos com a minha madrasta também a fazer com Teresa Lira.

Não lembro como foi que eu aprendi, mas aí era com as minhas irmãs em casa mesmo. Fazendo carreiras lisas, fazendo barrinha fina, coisas assim. Mas não foi com Teresa não, que quando comecei minhas irmãs quando pegavam material a gente já fazia em casa a turma, mãe irmãs, colegas.

Desde antes, mesmo solteira em casa tudo o que eu tinha, o meu trabalho já era com tapete. Tipo assim, o que eu tinha, o que eu precisava fazer, comprar roupas, um objeto, alguma coisa, sempre foi tapete. Então, o tapete na verdade é como se fosse outra área, aqui tem horário pra pegar, depois de fazer as atividades domésticas, senta no tapete, depois de fazer o almoço, fazer alguma coisa, senta no tapete, então tapete realmente, pensando direitinho é como se fosse um trabalho, é um trabalho.

Indo pra lá mesmo em Camaragibe vai fazer vinte (anos) agora em dezembro

Teresa vinha com o carro, cheia de material e aqui distribuía pras meninas, eu fazia, minhas amigas faziam, minhas irmãs faziam… então a maioria, todo esse povo aqui tudo fazia com Teresa Lira, tudinho. Eu só comecei a ir pegar diretamente em Camaragibe depois que ela parou. Porque quando ela parou eu ainda fiquei com uma peça dela em casa fazendo. Aí, desse que eu fiquei fazendo já peguei, o outro já foi diretamente veio pra mim no meu nome, entendeu? Aí, comecei após, depois que ela parou. aí, por isso que eu não sei os anos totalmente. Eu sei o tempo que eu tô lá, mas voltando… foi quando ela parou aí, pra concluir ela tem que dizer quando foi que ela parou.

Lá (na fábrica em Camaragibe), vai tem uns 20, mas  deixa eu ver, desde que Teresa Lira parou de fazer, eu não lembro o ano que Teresa Lira parou aqui e eu comecei lá. Então, deve ser na faixa de uns vinte e cinco, trinta anos por aí.

Indo pra lá mesmo em Camaragibe vai fazer vinte agora em dezembro, agora, antes eu não ia pra lá fazer correção na sexta-feira, o carro trazia material praqui, no caso trazia pra minha casa pra eu fornecer as meninas que fazem também, então voltando uns sete oito anos pra trás. Então entre tudo, estando lá e estando em casa trabalhando pra lá, nessa faixa de trinta anos, eu comecei cedo, treze, catorze anos nessa faixa de idade eu já fazia com Teresa Lira que já trazia de lá. Então realmente, meu trabalho sempre foi o tapete.

É o trabalho eu trago a tela, as lãs e o modelo Desenhista intérprete

Esse mesmo, era desenhar e encher, não era a parte de acabamento não, porque a parte de acabamento é lá na loja, não é com a gente não. A gente só pega o material, pega a tela o material e entrega quando tá aqui… pronto, pega a tela limpa e dá todo cheio e desenhado. É o trabalho, parte de acabamento, colar, forrar, ir pra cliente já não é aqui da nossa parte que trabalha em casa.

Entrei como balconista porque eu despachava os tapetes e depois como uma colega minha veio para o meu lugar eu fui pra lá pra fazer esse tipo de amostras, desenhos…

A parte final que te falei, colar, forrar, correção, porque a gente termina aqui. O tapete, a gente, as meninas, quando terminam o tapete quando chegar, tem que ser corrigido. Aí isso às vezes uma folhinha faltando, tem que repor, um ponto folgado, a gente tem que ir ajeitar. Então isso aí é a correção a parte final dos tapetes. (Depois da) Correção, vem a cola que é o acabamento, a secagem que tem que esperar secar, e depois costurar o forro, até ficar pronto pra ser usado aí esse processo já é feito lá.

Eu que trago pra cá, mas os modelos dos desenhos o cliente é que manda, os coloridos o cliente é que manda. Marcam os coloridos, a gente geralmente agora, faz uma amostra, dessa amostra a gente fotografa, manda por zap ou por email, os clientes aprovam, e só depois da aprovação é que é feito o tapete.O processo é meio… não é lento não, mas passa por todos esses procedimentos ou a gente também apronta as amostras, amostras viajam e quando chega o produto lá a mostra, os clientes já em mãos, né? com o que pediu já faz o pedido.

É, eu trago a tela, as lãs e o modelo, então eu passo pra essas meninas com essa explicação, então eu marco o desconto, pra ser começado, aí primeiro a gente faz o centro e depois é que vem barra.

Desenhista intérprete. Eu só não entendi o intérprete, mas o desenhista é porque como ela cria os desenhos, risca, maior, menor, pequeno, então eu que faço as amostras. A desenhista tudo bem porque a gente usa muito esse nome, “não eu sou desenhista”, agora assim, a desenhista na linguagem da gente, tem a desenhista pra desenhar e a enchedeira que é pra preencher todos os pontos.

Mas minha vida é esse corre-corre mesmo... o meu trabalho, eu tenho que está disponível pra ir pra onde for, onde o tapete estiver eu vou

Rapaz, pra mim é muito significante, muito importante, assim é bom a gente saber, porque assim tudo que eu tenho, né? Que pra mim eu dou graças a Deus por tudo e pelo tapete. Porque se eu não tivesse hoje com o tapete, podia ser que eu não tivesse hoje empregada esse tempo todo, se eu não gostasse do que eu faço  se eu não fizesse as coisas com prazer, com amor, com tudo, dedicação, então, eu acho que eu não estava onde eu estou. Então o meu trabalho o tapete, porque veja, porque vê só, pensando direitinho, desde pequena eu já comecei com o tapete. Porque eu digo Teresa Lira, porque foi ela realmente que veio com o tapete de lá pra cá, então isso passou por mãe, por irmã, por tia, tudo é com tapete, então pra mim o tapete, o meu trabalho, é muito significante pra mim.

Mas assim, uma correção, eu às vezes vou na casa das meninas, passo o dia lá, vou de manhã, volto meio-dia almoço, volto novamente. Porque vamos dizer, o meu expediente lá é só dois dias, mas o restante da semana em casa é o mesmo serviço, sendo que eu já fico na casa das meninas, né?

Porque eu já tenho menino, não pode ta na minha casa, eu, meninos são grandes e é o meu trabalho, eu tenho que está disponível pra ir pra onde for, onde o tapete estiver eu vou. Onde tem tapete precisando de uma emenda, eu me prontifico, tenho que ir. Ah, conheço todo mundo. Tem muitas que passa um tempo sem fazer, não porque engravidou não pode fazer, fez uma pequena cirurgia não pode fazer. Mas assim que podem fazer me ligam que meu número não é o mesmo? “Leia, tem tapete” “Agora não, mas quando tiver eu dou um toque” e assim vai…

Aí essa é minha vida...

O lugar que eu mais gosto? Bem… eu não… tanto faz. Porque lá (em Camaragibe), meu trabalho aqui é o mesmo de lá, as meninas de lá porque assim… é a mesma coisa. Em casa se torna melhor pra mim, mais comodidade porque aquilo que eu te falei tem essa vantagem. Lá é mais corrido. Pronto, meu trabalho lá é corre corre igual aqui.

Agora acontece assim de elas apressarem o tapete e eu fico pensando no que fazer, porque assim quando acontece quando a dona avexa o tapete, já são avexados, mas acontece que acontece alguma coisa e elas pedem quinze dias antes, aí, Dona Maria liga pra mim, olha,N avexou o tapete e tá precisando pra tal dia… “mas dona Maria a menina tá no prazo” “Mas, Leia, resolva” aí ela já pede porque assim eu procuro solução, né? Eu procuro resolver…

Mas é a rotina do meu trabalho, e eu não esquento com muita coisa não.

Trabalhar pra onde eu trabalho já é outro tipo de coisa

Isso aqui é diferente de onde eu trabalho praqui, gente, eu já entendo, lá Dona Maria manda o material, depois que tá pronto recebe, mas os daqui, como é uma associação, e não tem comprador certo, eles não tem um cliente certo, eles fazem o tapete, colocam na loja e vai aguardar ser vendido. Trabalhar pra onde eu trabalho já é outro tipo de coisa, recebe o material, faz em casa autônomo e depois quando tá pronto a peça recebe a medida: tal vezes tanto vezes tanto xis, aí também eu trago o pagamento das meninas.

É igual ao que Teresa fazia, e Teresa vinha com o carro, cheia de material e aqui distribuía pras meninas, eu fazia, minhas amigas faziam, minhas irmãs faziam… então a maioria, todo esse povo aqui tudo fazia com Teresa Lira, tudinho. Eu só comecei a ir pegar diretamente em Camaragibe depois que ela parou. Porque quando ela parou eu ainda fiquei com uma peça dela em casa fazendo. Aí, desse que eu fiquei fazendo já peguei, o outro já foi diretamente veio pra mim no meu nome, entendeu?

Eu não tive essa dificuldade de sentir a falta porque eu já fui logo pegando outro diretamente com o pessoal. Porque eu já conhecia o pessoal de lá. Porque quando Teresa Lira precisava de ajuda pra acabar tapete, na sexta-feira eu já ia pra lá pra trabalhar com ela. Então eu já conhecia o pessoal da loja, então quando eu fiquei com um dela terminando que ela parou, aí a colega do trabalho disse, a senhora, gerente: “Olha, Leia, Teresinha não ta mais fazendo como eu vou fazer pra receber esse?” “não tem problema quando tiver pronto…” o carro sempre vinha praqui duas vezes na semana, que fornecia material ia  na casa da dona, então eu não senti falta do tapete porque findava pegando outro.

É uma terapia, é bom, eu mesma não acho ruim fazer tapete não

Olha, dia de domingo, quando dá, né? aí eu durmo um soninho de tarde, mas ai quando eu me levanto eu vou lá pra frente, chega uma irmã pra gente conversar eu ainda sempre pego um tapete pra fazer alguma coisa. Sempre tem uma coisinha pra fazer, difícil não ter, porque pronto, eu tô aqui mas to com duas amostras pra fazer pra vim pedido de tapete.

O que acontecer com um tapete pra dar como perdido assim eu nem sei, porque lá a gente trabalha com restauração, vem tapete pra gente consertar de vinte a trinta anos, minha filha, e a gente restaura.

O trabalho na vida de uma pessoa, isso supondo na minha, o trabalho é tudo, porque com o trabalho que a gente paga as coisas, sustenta a família, é… procura dar o melhor a família da gente, né isso? Então o trabalho é isso… a gente sem trabalho, eu nem imagino como é que seria eu sem trabalhar, porque na altura do campeonato eu sem trabalho, meu esposo sem trabalho a dificuldade era maior.

É uma terapia, é bom, eu mesma não acho ruim fazer tapete não, é eu não acho. (O tempo) passa mais rápido, porque às vezes você tá com alguma coisa, tá passando por alguma situação, algum problema, e aí você quando senta que foca naquilo que você ta fazendo então vai tirando as outras coisas da mente. Tipo assim o que eu disse, se tiver passando por algum problema, porque assim problemas a gente sempre tem, né? Seja financeira ou …  o trabalho eu não tenho do que reclamar não porque meu trabalho é esse mesmo. Prazo apressados eu já sei, pega com prazo, elas acontecem difícil demorar , sempre procuram adiantar, então já faz parte aí isso aí não me aperreia muito não, não me estressa não.

Desde que eu nasci, fiquei criança, até agora adolescente, mulher e tudo, nesse ramo de tapete

Pra mim é muito importante ser artesã, certo? É… não penso em outra coisa, desde que eu nasci, fiquei criança, até agora adolescente, mulher e tudo, nesse ramo de tapete, artesanato, então pra mim é tudo de bom. Não me vejo fazendo outra coisa.

Em trabalho eu tô realizada porque eu já faço o que eu gosto.

Se tivesse trabalho pra o meu esposo, né, então isso aí já… não é desejo, isso aí é necessidade eu acho, né? Trabalho pra o dono da casa e a dona da casa as coisas eram outras. Mas desejo assim de outra coisa, ou profissionalmente ou em casa em família, não não tenho assim o que falar não. Como pessoa, como mulher, como trabalho não tenho o que reclamar, né? Aí sim, é riqueza, não. Riqueza é o mínimo pra mim. Então só sossego, paz, paz de espírito, a gente procurar viver, não é não errar mas procurar sempre fazer o que é certo, é isso.

Ser mulher? Rapaz, ser mulher pra mim é a gente já nascer mulher mesmo, tem que ser mãe, amiga, procurar ser tudo isso né? mãe, amiga, companheira, isso é ser família, né? Então ser mulher carrega tudo isso aí, pra mim. Eu gosto de ser e gosto de representar o meu papel de mulher, mulher é isso que eu falei né? De trabalho também é ser amiga, ser é parceira, né? Procurar ajudar, ser ajudada, reconhecer se errou, pedir desculpas, é isso.