Milene, 25 anos

Milene

Milene aprendeu crochê com onze anos. 

Sua primeira peça foi uma passadeira. 

Na sala de sua casa, sentada no sofá, com a fala rápida, e o pensamento mais rápido ainda, ela nos contou suas histórias, com um ar leve e solto. 

Pesquisando em 2017 sobre o crochê de Macaparana, encontrei Milene nas redes sociais. Desde lá, Milene foi nossa porta-voz na cidade. O projeto deve muito à mãe de Enzo. Ela se diz muito falante, mas o que sentimos quando estamos ao lado dela é uma espécie de encantamento. Sua juventude e sagacidade, sua força e sua meiguice nos arrebata. Ela nos leva. Vamos com ela. A conversa corre solta, ela traz várias histórias de vida e de trabalho. Nos fala de suas referências no crochê, de sua criatividade e da agilidade com a agulha.

Conversamos com ela no Sítio Pá Seca, em sua casa verde, com sua mãe Emília e com seu filho Enzo. Seu pai chega quando estamos perto de acabar a conversa e nos preparando para partir. Chega suave e tímido, e encheu de banana a mala do nosso carro.

Narrativa

MINHA MÃE QUERIA ME INSTRUIR

Imagine eu com onze anos fazendo crochê? Era cada croc, viu? minha nossa! Acho que eu sou meia louquinha disso. É, era pra aprender. É que eu era muito destruidora, desde pequena, né? Assim, acho que do tamanho de Enzo [o filho].

Minha mãe tinha muita coisa de crochê. Aí eu gostava de brincar por aí pelo sítio, levava. Aí quando eu comecei a ficar grande, minha mãe queria me instruir, pra aprender, né? e eu nem aí. Mainha: “é assim, é assado, e tal”… e quando eu olhava pra televisão, ela: “olhe pra cá, que é pra você olhar pra cá, pra você aprender”.

DAÍ DESLANCHOU E... HOJE EM DIA EU JÁ SOU MEIO ATREVIDINHA

Daí então aprendi devagarzinho. De dez pros onze, eu me lembro bem que foi dos dez pros onze. Eu lembro que eu fiz uma… veja só, era muito difícil naquele tempo, né? Aí lá vai eu, muito bonitinha a fazer uma passadeira para mesa, quando eu ia já terminando, aí levo numa mulher lá embaixo, né? que ela tava dando meio que me dando umas dicas, quando eu vou olhar, um lado do bico errado. Eu digo: “Oh Glória!” Aí, já começou bom, né? Aí, vai desfazer. Eu desfiz todinha, e comecei tudo de novo. Aí, pronto. Daí deslanchou e… hoje em dia eu já sou meio atrevidinha. Eu fiz, o pedacinho de mostra veia, mas tá por aí tudo cheia de grude. Os paninhos pequenininhos, e depois que eu aprendi mesmo, aí comecei a fazer peças grandes.

NASCI E ME CRIEI NESSE MESMO LUGARZINHO

Eu nasci no hospital de Macaparana, sou natural daqui da terra. Nasci e me criei morando nesse mesmo lugarzinho. Nesse mesmo pedacinho de terra que é da gente. Mas daqui a gente só sai se a gente enricar, né? A gente compra um lugar melhorzinho, né? Mas o pedacinho de terra da gente é daqui.

ERA EU E MINHA MÃE, MINHA MÃE E EU

Minha infância foi junto com a minha mãe, era eu e minha mãe, minha mãe e eu, e meu tio, que é a mesma coisa de ser meu irmão. Meu pai trabalhava fora. Aí, era de casa pra escola, da escola pra casa. Nunca fui de ter amizades pra dizer assim: “ah, vou passar a tarde na casa de fulana, beltrana”. Eu sempre fui relaxada de casa mesmo. Mas foi uma infância legal. Eu tinha muitos amigos na escola, lá também se aprendia a fazer muitas coisas. Era a mesma escola lá de cima, só que hoje em dia ela tá reformada, tá bonitinha, né?

ENZO

Tenho minha benção aqui, né, Enzo? Enzo tem dois anos e nove meses. Já estuda.

EU SOU PROFESSORA FORMADA, NÉ?

Eu estudei aqui, até a quarta série, no tempo, que hoje é o quinto ano. Aí daqui eu migrei pra escola Moura Cavalcanti, depois eu fui pro Creuza e lá fiz o ensino médio, na verdade eu fiz o normal médio. Eu sou professora formada, né? Só não tenho essa coisas, faculdade, mas daqui a uns dias eu tenho, se Deus quiser. Eu gosto da área de professor, mas hoje em dia, como é uma coisa muito difícil, eu nem sei que rumo eu tomaria, mas alguma coisa que fosse de formação. Fiz o magistério, estagiei, fiz o TCC, aquelas agonia toda. O TCC foi sobre gêneros textuais.

AÍ TEM A GATINHA, O CACHORRINHO, O PAPAGAINHO...

Mora eu, meu pai, minha mãe e meu filho. Aí tem meu tio, que é meu irmão, porque minha mãe foi quem criou ele. É meu tio, mas na verdade é meu irmão, meu pai também, é meu tudo, que mora no Rio de Janeiro e todo ano ele vem e passa o mês com a gente. Aí tem a gatinha, o cachorrinho, o papagainho… e só. O nome da gatinha é Moreninha, porque ela é bem pretinha. Como a gata foi Enzo que trouxe da casa da vizinha, aí ele chegou e disse que o nome dela é Moreninha, e aí ficou.

PORQUE O QUE NINGUÉM SABE, NINGUÉM ESTRAGA

O lugar que eu mais gosto é o meu quarto, sem dúvida, não por ele ser mais confortável, mas, assim, quando eu quero me esconder pra trelar, eu vou me esconder lá, né? Aí inclusive as visitas curiosas que chegam, aí minha mãe pergunta: “cadê Milene?” Eu guardo, né? Porque o que ninguém sabe, ninguém estraga.

E ASSIM É A ROTINA QUASE TODO DIA

No dia a dia geralmente eu acordo de manhã, arrumo o mocinho pra levar pra escola, aí deixo na escola. Aí na volta, quando eu já tenho uma encomenda pra fazer, eu fico fazendo até umas nove e meia, dez horas. Aí de umas nove e meia, dez horas, eu paro, tomo um cafezinho ali, assisto um pouco de televisão, e já é quase a hora de buscar a criança na escola de novo. Aí às vezes eu já fico aqui fazendo crochê, e de olho na hora.

Quando já é onze e vinte e cinco, eu já vou buscar o mocinho na escola, aí chega em casa vai dar banho, vai dar almoço, vai fazer dormir a pulso, porque depois que ele almoçar ele vai dormir, porque tem que fazer as coisas que tem que fazer, aí eu boto ele pra dormir, e a gente fica fazendo um crochezinho, ou senão a gente vai dormir um soninho, pra gente fazer crochê à noite. E assim é a rotina quase todo dia, só muda um pouco quando a gente vai pra Macaparana, geralmente umas duas vezes na semana, vai resolver umas coisas lá e volta, mas na verdade é assim todo dia.

A GENTE FAZ PARCERIA NA VERDADE

Aí, ele é o meu trabalho, ele é a minha fonte de renda. Eu faço com a minha mãe, a gente faz parceria na verdade, quando é um trabalho muito grande, assim tipo almofada, eu faço as frentes e ela vai fazendo as costas, aí às vezes a gente vai dando o acabamento, uma prega o zíper, e assim vai. Quando é uma peça grande, assim, tipo uma colcha, raramente a gente faz, hoje em dia a gente num faz muito não. Aí uma vai fazendo os bicos e a outra vai tecendo a colcha, aí quando termina a colcha, prega o bico e já tá tudo pronto. Dava mais certo fazer crochê.

Eu já fui babá quatro meses no Recife, mas acho que eu não me habituei direito, eu ficava lá quinze dias e nos outros quinze dias eu vinha pra casa. Eu vinha na sexta e voltava na segunda. Trabalhei em pizzaria, na Novo Horizonte.

Dava mais certo fazer crochê. Fazendo crochê eu estou no conforto da minha casa, ganhando pouco, mas é meu, mas pelo menos tem hora pra dormir, né?
Meu pai é pedreiro, e trabalha no campo também. E eu e minha mãe a gente fica em casa fazendo crochê.

BEM, EU COMECEI A FAZER CROCHÊ, MAIS OU MENOS COM DEZ PRA ONZE ANOS

Bem, eu comecei a fazer crochê, mais ou menos com dez pra onze anos de idade, eu ainda estudava aqui no sítio, tava em transição de mudar do sítio para estudar em Macaparana. Eu comecei a fazer crochê, e daí então eu comecei a fazer crochê pra Dona Ivonete, de Macaparana, ela dava a linha, o material, e a gente tecia a peça, e pela peça a gente recebia aquela quantidade x, no tempo era 25 reais, uma passadeira para uma mesa. Num era lá tanto dinheiro, mas era o dinheiro que eu conseguia, né?

Eu já tava começando a estudar em Macaparana, e as meninas lá tudo boyzinha, tudo arrumadinha… ué, eu tinha que fazer crochê para adquirir um dinheirinho, né? Aí comecei fazendo, me interessando e fazendo mais.

Aí comecei a fazer pra filha dela, Ivanise Pedrosa, aí fiz bastante tempo, aí de vez em quando a gente tem as nossas divergências sobre o preços, a gente se distanciou, mas foi assim.

Hoje em dia eu ainda trabalho pra filha dela, ainda. No mesmo esquema, ela dá a linha e a gente produz, e ela paga x. Na verdade a gente terceiriza pra ela. A gente faz a peça, ela paga e leva pra vender fora.

EU VENDO POR ENCOMENDA

Hoje a gente vai procurando pela internet. A gente também faz por encomenda, assim, as mães encomendam e a gente faz numa boa. Eu vendo por encomenda. Às vezes eu faço uma peça avulsa, e às vezes a gente consegue vender, mas às vezes não, porque o povo pensa que fazer crochê é muito rápido de fazer, é muito barato e aí…

AQUI NA PÁ SECA, TEM FESTA NA COMUNIDADE

Macaparana não tem nada que você diga, assim… tem uma coisa que você faça que é seu lazer. Na praça da cidade vai ter domingo um projeto, que leva as crianças pro parquinho, tem lanchinho e essas coisas, aí o povo leva, da cidade leva.

O cine Mascarenhas, funcionar não funcionou; agora, quando a gente estudava sempre tinha sessão cinema. A gente vendia os ingressos pra arrecadar dinheiro pra formatura. Aí colocava um filme.

Aqui na Pá Seca tem festa na comunidade. Tem a de São José, que é no mês de março, e tem no fim do ano, que vai ser agora 21 a 24 de dezembro, que é uma capelinha lá em cima, que é onde que tem a fonte que traz água pra gente, aí lá vai ter festa de 21 a 24, vai ter festa na comunidade. Aí vai ter procissão, com santo, vai ter o padre rezando uma missa, tem uma bandeira lá que eles colocam lá no terreiro. Tem povo que vai pagar promessa de alguma coisa, nessa festa do Menino Deus. No dia de ano tem o arrancamento da bandeira. Que é arrancar essa bandeira que pregaram no dia 24.

SÓ COLOCARAM O NOME QUE MACAPARANA É A CIDADE DO CROCHÊ, E PRONTO

Interesse, incentivo, a gente não vê. E valorizar? Só colocaram o nome que Macaparana é a cidade do crochê, e pronto. Mas, assim, incentivo, assim, valorizar… eu acho que devia ter mais valor pelo fato da cidade ter o nome da cidade do crochê.

Eu acho que é pelo fato de muita gente fazer crochê em Macaparana. Macaparana em peso faz crochê. Hoje em dia você pode ver de menos, porque você raramente vê uma pessoa jovem fazendo. Hoje eu digo, porque aqui na minha comunidade eu sou a mais jovem faz, geralmente só são as senhoras e muitas vezes querem ensinar às filhas e às netas, que muitas vezes nem querem, nem tem interesse. Assim, se você chegar em Macaparana, você vê muita senhora fazendo.

PARA O PSICOLÓGICO ELE É MUITO BOM

O crochê é muito valioso, principalmente, assim, para o psicológico ele é muito bom, porque você para ali e esquece de tudo, de barulho, de problema, seja lá o que for. Se você fixar sua mente ali, ó, você vai esquecer de tudo. Isso é muitas vezes melhor do que uma dose de remédio. Eu não vou dizer assim não, ó, que eu já tive depressão, mas eu já passei por um momento muito difícil. E eu saí do crochê, eu tinha encomenda pra fazer, mas eu vivia largada lá em cima de uma cama, só reclamando, eu ia fazer o quê?

Eu tinha que me reerguer porque eu precisava fazer. E foi daí que eu fui tirando forças. Eu não digo que eu vivia em depressão, mas eu tive um momento difícil que eu saí desde o crochê, foi ele que me levantou de novo. Que pra quem entende e pra quem sabe não, digamos, no valor em dinheiro, mas um valor sentimental, um valor… eu gosto muito do meu crochê.

EU GOSTO DE ME DESAFIAR

Uma peça minha, assim, pra dizer: “eu criei”, eu nunca criei nada. Eu tenho muitas ideias, mas nunca boto nada em prática. Estou tirando uma amostra, pra, se Deus quiser, meu projeto de 2020 vai ser fazer um dos vestidos dela [de uma blogueira da internet], porque eu gosto de me desafiar. Aí eu comecei a fazer do mesmo jeito que ela, mas isso aqui eu vou fazer ela maior, né? Vou fazer ela pra uma mesma, e depois vou fazer um vestido dela.

EU GOSTO DE ME MOSTRAR

Eu gosto. Eu gosto de me mostrar. Eu gosto quando o povo diz assim: “quem foi que fez?” Eu digo: “Eu!” Eu acho tão bom, fui eu que fiz. Quando eu vou na escola eu gosto de ir muito de crochê, quando tem reunião, mesmo, eu vou de crochê.

É UMA BATALHA

Olhe, ser mulher hoje em dia, é uma batalha, viu? É uma guerra, todo dia a gente tem que matar uns três leões. Porque além da mulher ser dona de casa, na verdade quase todas são dona de casa, né? Aí você tem que ser mulher, dona de casa, você é mãe, você tem a tarefa de educar seus filhos, que seu marido trabalha, e você pode ver, tem reunião na escola e os pais geralmente nem vai, quem é que vai?, a mãe. O filho tá doente, sobra pra quem? Pra mãe. Aí, ser uma mulher, ser uma guerreira, é matar um leão todo dia, que não tá fácil não, viu, muito difícil.

NO MUNDO DO ARTESANATO EU ACHO QUE AS MULHERES LEVAM 90% DA POPULAÇÃO

Ah! Digamos que seja pior [ser mulher artesã]. Porque os filhos querem atenção, e muitas vezes as mães não tem tanta atenção assim pra dar. Mas é, no mundo do artesanato, eu acho que as mulheres levam 90% da população, porque os homens hoje em dia não curtem a ideia de ser artesão. Crochê muito menos, que veio muito preconceito com essa história. Tem até aquela história de quem faz crochê é a vovó. Será que só a vovó tem o entendimento de fazer crochê?