Este texto é um relato/registro da pesquisa realizada pela equipe do projeto Mulheres que Tecem Pernambuco, em uma experiência desta pesquisa que é coletiva, e que se dá por meio de uma imersão e de encontros. Mesmo que este relato seja estruturado por mim, como pesquisadora, todo processo se desenha e acontece entre as mulheres da equipe e entrevistadas. Estas, as entrevistadas, são as protagonistas dessa história, que nos receberam carinhosamente em seus espaços de vivência com a técnica do bordado.
Bordado de Passira
por Lu Azevedo
Fotos: Laura Melo
O Bordado de Passira é conhecido em todo estado de Pernambuco, assim como em toda a região próxima, como a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Não que não hajam outras cidades nessa região que bordem, até porque segundo o Relatório da Pesquisa Municipal de Cultura, publicado em 2007 pelo IBGE, o ‘Brasil é um país que borda’, sendo essa a atividade artesanal mais praticada em todo o país. Mas sim porque o bordado de Passira é reconhecido por seu traço delicado, por suas cores suaves e porque a cidade se intitula como a Cidade do Bordado.
As características estéticas do bordado de Passira remetem aos bordados tradicionais europeus, ensinados às mulheres de famílias ricas entre os séculos de colonização e expansão rural no Brasil e, sabendo que o trabalho artesanal no país foi marginalizado no processo de industrialização e que as artes têxteis sempre foram consideradas adequadas ao feminino na sociedade patriarcal, é de se esperar que esse Saber-Fazer esteja presente nas mulheres das camadas populares da população, principalmente em zonas rurais.
Sobre a educação feminina nos séculos XIII e XIX, no Brasil, Gilberto Freyre nos relata que:
Nos oito ou nove anos, era menina de família patriarcal mais opulenta enviada para um internato religioso, onde ficava até os treze ou quatorze. Aí, sua educação, começada em casa, continuava. Aprendia a delicada arte de ser mulher. Música, dança, bordado, orações, francês, e às vezes inglês, leve lastro de literatura eram os elementos da educação de uma menina no internato escolar. (grifo nosso)
Em consonância, Dona Lúcia (Presidente da Associação de Mulheres Artesãs de Passira – AMAP) relata que por muito tempo bordou junto a sua mãe, com quem aprendeu a bordar, para uma senhora chamada Gracinha, que ensinava outras mulheres. Além de bordar, Gracinha também estabelecia uma relação de atravessadora, uma vez que entregava a matéria-prima (tecido e linha) para a bordadeira e recebia o produto bordado, mediante um pagamento, para ser vendido em Recife. Segundo Dona Lúcia:
Chegava uma pessoa lá e dizia: “Dona Gracinha, eu quero aprender.” Aí ela dizia: “Sente aí…” Aí ela ensinava. Ela era filha de Passira, mas só que ela passou um bom tempo estudando em colégio de freiras. (…) ela sabia bordar divinamente.
Maria Regina Batista e Silva atribui, em sua dissertação de mestrado publicada em 1995, a presença e o desenvolvimento do bordado em Passira a dois fatores: a chegada de missionárias alemãs na década de 50 que fundaram o colégio religioso feminino Regina Coeli, em Limoeiro − cidade próxima a Passira − e, também, às políticas públicas de assistência que, diante da falta de alternativa de trabalho para a população após o fim do ciclo de lavouras de algodão naquela região, identificou o bordado como potencial para geração de renda para mulheres.
Essas evidências reforçam a ideia de que o bordado de Passira surgiu não por um fato particular da cidade, mas por uma junção de fatores que fez com que a cidade ganhasse essa projeção, iniciada por famílias mais abastadas da cidade, que entregavam o material às mulheres e estas, por sua vez, incorporaram o ofício do bordado em suas atividades domésticas.
As mulheres entrevistadas relataram, repetidas vezes, que a cidade, há alguns anos, ficava cheia de pessoas nas calçadas bordando e conversando nos finais de tarde. Dessa maneira o bordado constituía parte da sociabilidade da população, parte da renda das famílias e, também, a rotina e o cenário da cidade.
Há aproximadamente 50 anos, “Passira quase 100% bordava. Olhe… era adulto, criança, adolescente, todo mundo bordava, até maridos que ajudavam suas mulheres…”, mas ninguém, hoje, soube dizer como esse movimento começou na cidade.
Ainda hoje, ao cair da tarde, quando o sol está mais ameno na cidade, encontramos diversas mulheres bordando nas calçadas. E foi com elas que, em conversas informais, escutamos muitos relatos sobre seus “problemas de vista” desenvolvidos após anos bordando, sobre suas habilidades e também sobre o tempo e os valores de cada “cacho de flor” bordado.
Foi nesse processo de sociabilidade que se estabeleceram os traços reconhecíveis do bordado de Passira, afinal uma peça bordada envolve o trabalho de várias mulheres, distribuídas entre as que cortam, riscam, bordam, limpam e engomam.
O Processo produtivo do bordado de Passira
A técnica do bordado, de uma maneira geral, consiste em aplicar diferentes pontos no tecido, que geram efeitos diferentes de volume e textura, pode ser feito com o suporte de um bastidor ou não. Em Passira, as mulheres que bordam, em sua maioria, não usam bastidor.
Para iniciar o processo do bordado, é preciso definir qual será o produto para que o tecido adequado seja cortado nas dimensões necessárias. No decorrer da nossa pesquisa, foi possível observar que os tecidos utilizados são Tecidos Planos, ou seja, tecidos mais estáveis compostos por entrelaçamento de fios; destes, a maior parte em composição de algodão ou mesclados entre algodão e poliéster, mas também encontramos tecidos em linho.
Para os produtos ditos “cama, mesa e banho”, os tecidos mais usados são: linhão, cambraia ou linho, que apresentam uma estrutura similar por suas tramas abertas e visíveis, além de um pouco de rigidez, o que possibilita que o bordado fique firme no tecido.
Em uma visita ao Centro Cultural e Comercial do Bordado de Passira, presenciamos a visita de um vendedor de tecidos que havia ido ao encontro das bordadeiras. Ele trazia tecidos em pedaços, vendidos a quilo, em diversas cores. Elas selecionavam de acordo com cores e tamanhos, para que pudessem encaixar as dimensões de guardanapos e caminhos de mesa.
Por outro lado, os produtos de vestuário são em sua maioria confeccionados em tecidos de algodão, mais maleáveis e próprios para vestuário, mas também encontramos tecidos em viscose e também o jeans.
A fim de organização e melhor entendimento do processo, as próximas etapas apresentadas serão separadas e detalhadas a seguir.
Risco
Após a escolha do tecido e seu corte nas dimensões desejadas, é preciso definir a localização e as formas do bordado. Essa etapa é chamada de “risco”, que consiste na aplicação de uma solução feita a partir de óleo mineral e anil em pó através de um molde desenhado em papel vegetal. O risco é uma etapa peculiar porque poucas mulheres dominam a técnica de riscar.
Riscar é definir o desenho que será bordado, nas dimensões adequadas. Uma vez que o risco está pronto, pode ser reproduzido inúmeras vezes. Tivemos a oportunidade de encontrar Dona Bebel, uma das poucas mulheres que riscam, e ela nos mostrou seus riscos feitos há 20, 30 anos, que continuam sendo reproduzidos e aplicados nos produtos feitos hoje. Ela nos mostrou a simetria e os detalhes de suas obras de arte e como são aplicados no tecido. Dessa maneira, sua casa recebe muitas bordadeiras diariamente para que ela risque os tecidos que serão bordados.
Esses riscos/moldes são perfurados com agulhas nas linhas dos desenhos e o anil diluído no querosene é aplicado com um tecido amarradinho, atravessando o papel vegetal e marcando o tecido com o desenho a ser bordado.
Atualmente, algumas bordadeiras também relatam que utilizam referências encontradas na internet ou mesmo estampas de outros tecidos para conceber o risco a ser bordado, como nos disse Dona Nete: “Bordadeira é sempre assim… sempre buscando coisas novas.”
Bordado
Após riscado, o tecido deve ser bordado de maneira que “cubra todo o risco”. Quando o produto é desenvolvido pelo sistema “dos lojistas”, as bordadeiras já recebem o tecido riscado e uma quantidade de linha nas cores previstas pelos comerciantes. No sistema associativista, contudo, existe duas possibilidades: a de escolha da bordadeira, que escolhe o produto, o risco e as cores com que vai trabalhar; e o trabalho por encomenda, já definido como será feito a partir do pedido e distribuído entre as associadas.
Os pontos-base de bordado utilizados são: ponto-atrás, ponto-de-sombra e ponto-cheio. Com esses são formados os mais diversos desenhos e texturas, a depender do volume e das formas desejadas. Dentre essas, as artesãs citam flores como “rosinha mimoso” margaridas, papoulas, e também abelhas, folhagens, pássaros, planetas, etc.
Dona Lúcia nos relatou sobre as mudanças ao longo do tempo: Foi tomando formas diferentes, porque depois eu lembro, quando criança, minha mãe bordava muito bordado muito cheio… aquelas pimentas bem cheias e rosas bem cheias. Depois, a gente começou a fazer magarida, papoula e, depois, diversificando aquelas rosas maiores. Aí hoje muita gente só sabe bordar esse floral grande. Flora pequeno eram as pessoas mais antigas que bordavam. Poucas, atuais, sabem bordar aquelas florzinhas pequenininhas.
É interessante notar como os motivos tradicionais, principalmente flores, estão sempre presentes, mas os novos riscos também são incorporados seguindo o mesmo traço delicado que caracteriza o bordado de passira.
A incorporação desses novos motivos é um processo natural diante da transformação da própria cidade ao longo do tempo, do repertório das bordadeiras, das demandas de mercado, da aproximação de um sistema de moda − ou seja, de inovação rotineira para o consumo − de trocas com profissionais externos e, ainda, de estratégias encontradas pelas próprias bordadeiras para aumentar a produtividade e atratividade dos produtos, como nos relata Dona Maria da Paz: Passira tem muito concorrente aí nós tem que ter inovação. Tem que ter coisa diferente. Todo mundo em Passira borda, mas cada uma tem a sua característica diferente. Aí tem que inovar no risco, botar uma bainha diferente, e hoje em dia tem a internet que ensina também.
A bainha citada por Maria da Paz é uma técnica que consiste em desfiar o tecido, criando vazados e arrematando nas laterais. Assim, a técnica é de ornamento, mas também, muitas vezes, dispensa a costura à máquina porque já faz o acabamento.
Ao finalizar o bordado, o tecido deve ser imerso em uma solução de água e um “sal de tirar risco”, que identificamos como ácido cítrico. É nesse momento que chegamos à etapa de lavagem, engomagem e passadoria, em que o tecido bordado é lavado à mão, engomado com goma de tapioca e passado, para que o bordado fique, definitivamente, bem acabado.
Engomar
Quem nos relatou e demonstrou a etapa de engomagem e passadoria foi Luciene, que é conhecida na cidade por sua habilidade nessa etapa. Luciene nos recebeu em meio ao trabalho e aprendeu a bordar e engomar com sua mãe:
E no bordado quem começou foi minha mãe. Ela que começou engomando, lavando o bordado na casa de seu Gildo Guilherme. Ela bordava também, mas ela engomava mais. Aí o tempo foi passando pra gente. Minhas irmãs foram aprendendo a fazer o bordado. Eu aprendi, depois esqueci e fui trabalhar em casa de família. Eu achei melhor trabalhar. No bordado eu não dava bem não, não gostava muito de bordar não porque doía as costas, cansava a vista, aí depois que minha mãe faleceu que eu voltei pra casa, porque eu tava trabalhando, aí eu comecei com bordado. Peguei a profissão dela de engomar.
Lucinete nos contou ainda que seu ex-marido também participava dessa atividade e que o ensinou a passar o bordado, depois de engomado. (Em outros relatos também foram citados homens que participavam da produção em Passira, em sua maioria na etapa de engomagem e passadoria, mas não exclusivamente.)
Lucinete recebe bordados de muitas bordadeiras em Passira para engomar e passar, e mesmo que não tenha o hábito de bordar, está inserida nesse sistema produtivo que, muitas vezes, apresenta uma cadeia colaborativa, revelando que ela não cobra para engomar para algumas dessas mulheres, mas que elas realizam outras atividades para ela, como bordar algum tecido que ela tenha comprado.
O bordado é um processo: lavar, a gente lava, e no momento que lava já prepara a água pra fazer a goma. Lava com água e sabão, lava normal. E já deixa uma vasilha com água esquentando, deixa fervendo lá no fogo. Quando ela já tá subindo as bolhas, coloca a goma numa vasilha, dissolve, vai botando e mexendo. É goma de mandioca. Dissolve na água e vai despejando aquele líquido na água e vai mexendo. Não pode deixar parada.
Após o preparo da goma, o tecido bordado é imerso por alguns instantes e, logo depois, estendido no varal. Depois de seco, o tecido é todo borrifado com uma solução de água e amaciante para, neste ponto, ser passado a ferro.
A Organização produtiva do bordado em Passira
Como dito anteriormente, o bordado de Passira é feito por meio de redes produtivas que funcionam de forma colaborativa, formal ou informalmente, até hoje. Por vezes orquestrada por atravessadores, outras dentro do sistema comunitário de associação ou vizinhança.
O sistema hoje utilizado por lojistas se iniciou com famílias abastadas da cidade, em um processo de ensino do bordado por mulheres dessas famílias a mulheres da cidade que precisavam gerar renda e bordavam o que era solicitado, mediante pagamento por sua mão de obra, sendo o material fornecido por essas famílias que também comercializavam os produtos finalizados na capital, Recife, desempenhando o papel de intermediários do trabalho artesanal e gerando um sistema de dependência.
Esse mesmo sistema perdura até hoje, porém quem desempenha o papel de intermediário são os lojistas da cidade, que detém o capital de giro para a compra de matéria-prima e os canais de distribuição dos produtos. Estes entregam o material para as bordadeiras da cidade, com o tecido já riscado e a quantidade de linha necessária, e recolhem o bordado pronto mediante pagamento. Algumas mulheres nos relataram que o bordado de um “cacho” de flor, de aproximadamente 20cm,* vale dois reais. Esse mesmo valor é pago a mulheres que costuram essas peças em suas máquinas de costura. (É possível observar que muitas casas da cidade têm máquinas de costura na entrada.)
Como o valor pago é muito baixo, algumas mulheres da cidade criaram estratégias para realizar o trabalho de uma maneira independente, por meio de associações ou mesmo trabalho autônomo, como cita Dona Nete:
Bordar pro lojista eles pagam muito pouco e vendem aquela peça cara. Hoje em dia a gente sabe. Hoje em dia quando eu compro o tecido eu sei a quantidade de peça que dá pra fazer, quanto custa e quanto eu vou ganhar, aí eu sei o quanto eles exploram as bordadeiras.
Na cidade e no campo, elas formam verdadeiras redes produtivas em que uma corta, outra risca, outra borda, outra engoma e passa. No final, o sistema não se difere muito do lojista porque quem tem o capital de giro − mesmo que reduzido − remunera as demais e detém o produto para a venda em feiras ou lojas, aplicando seu lucro como “gestora” do sistema produtivo.
Aparentemente, foi a partir da estratégia política do ex-prefeito Edelço Gomes, citado em diversos relatos, que constituiu a Associação das Bordadeiras de Passira, em uma iniciativa da própria gestão e não das bordadeiras. Também foi essa gestão que construiu o Centro Cultural e Comercial do Bordado de Passira. Atualmente a Associação está inativa e o Centro Cultural não tem muito movimento, inclusive, no dia de nossa visita, a maior parte das lojas estava fechada.
Apesar do reconhecimento da cidade como a “Terra do Bordado Manual”, atualmente as bordadeiras relatam uma queda grande na produção e na renda gerada pelo bordado, consequentemente, no interesse das pessoas por bordar e dos jovens por aprender. Isso porque, nas últimas décadas a produção material da sociedade mudou muito, com o produto globalizado e de uso efêmero, desvalorizando o produto manual que leva mais tempo para ser feito. Ainda, a automatização da produção têxtil aparece como fator muito citado, já que alguns lojistas passaram a produzir em maior escala com o uso da máquina de bordar.
A respeito da mudança no perfil de produto, Luciene nos relatou que já não engoma produtos de grandes dimensões: Hoje diminuiu a produção porque o produto é diferente, as pessoa não querem mais bordado em toalha… antigamente era toalha de 5 metros, 6 metros, 7 metros, toalha de banquete. Renascença engomei muito: colcha, toalha. Aí caiu totalmente. O que tá chegando mais pedido é guardanapo pra restaurante. Ah, a gente trabalhava com muita coisa, aqueles paninhos de bandeja, pano de pão… caiu muito.
Na contramão desse movimento estão as mulheres que se articulam em associação para fortalecimento e valorização do ofício, gerindo habilidades entre elas, participando de formações e feiras, estabelecendo parcerias até com comerciantes de outras cidades, como é o caso da AMAP − Associação de Mulheres Artesãs de Passira.
O Modelo Associativista
A Associação de Mulheres Artesãs de Passira foi constituída em 2007 por sete mulheres. Elas já bordavam e vendiam sua mão de obra para lojistas mas estavam insatisfeitas com os valores pagos e com o tratamento que recebiam.
Atualmente, Dona Lúcia é a presidente da Associação na qual participam por volta de 40 associadas. “Uma chama a outra”, como disse Dona Lúcia, que convidou Dona Nete. Dona Nete, por sua vez, convidou Luciene…
Eu comprava o tecido, eu fazia minhas peças e ela mandava junto com as dela então foi isso que ela fez. Vendeu, ela já me deu dinheiro e já compramos mais e daí tamo até hoje! Foi melhorando minha renda através dela. Parei de bordar pros lojistas, comecei a bordar pra mim, então melhorou bastante.
Elas têm clientes fixos, como uma compradora de guardanapos com bainha, em Minas Gerais, e lojistas de Santa Cruz do Capibaribe, que compram roupas infantis bordadas. Viviane é uma jovem associada, responsável pelas vendas e comunicação com o cliente, além de organizar as peças, embalar e gerenciar estoque. Ela nos relata que a maior parte das vendas constantes são pelo WhatsApp: “Pelo WhatsApp tiro foto e mando. Pego encomendas dos clientes, às vezes eles escolhem o tecido, aí eu repasso pras menina fazer. Negócio. Tem que agradar os clientes, né?”
Na Associação existem diferentes sistemas de trabalho: as encomendas grandes recebidas pela associação são gerenciadas internamente, com a compra de materiais e gestão de recursos financeiros, enquanto a mão de obra é distribuída entre as mulheres, que realizam seus trabalhos em casa ou na própria associação. Em outros casos, em uma produção pequena, as associadas compram o tecido e linhas, bordam em casa e utilizam a estrutura da Associação para uso de algum material, para fazer o risco, etc. Nesse caso, organizam para distribuir o trabalho entre elas e a Associação faz as vendas e realiza os pagamentos referente a cada etapa de trabalho naquela peça.
O cálculo dos valores é feito pelo trabalho, visto que algumas mulheres cortam, outras riscam, outras bordam, etc. Dessa maneira, cada peça vendida remunera cada associada pelo trabalho realizado de maneira colaborativa. Porém, o sistema da associação também tem espaço para a solidariedade, como cita Dona Lúcia: “se uma fica doente, qualquer coisa, a gente já sabe que a gente que vai passar uns 100, 200 (reais) porque a pessoa que não pôde…”
A Associação consegue ter fluxo de trabalho e venda durante todo ano e também participa da FENEARTE todos os anos, o que garante um fundo reserva, a compra de material e a estrutura do local. O trabalho também já proporcionou muitas viagens para participar de feiras e eventos em outros estados, oportunizando que Dona Lúcia, Dona Nete e outras associadas ensinassem a técnica em oficinas de bordado em Recife e em São Paulo.
Dona Lúcia também relata experiências vividas entre profissionais externos e a Associação, com os quais foram desenvolvidos outros desenhos e aperfeiçoadas algumas técnicas como modelagem, costura e estudo de cores.
Foi a partir dessas experiências que a associação passou a produzir outros tipos de roupas além das peças infantis tradicionais, como “vestidinho casinha de abelha” ou calcinha “bunda rica”, quando perceberam que encontravam boa aceitação no mercado. Para isso, buscaram formação e foram auxiliadas por profissionais. Contudo, também houve experiências que não foram muito construtivas, uma vez que estabeleceram, dentro do espaço associativista, a mesma organização de fornecimento de matéria-prima e pagamento apenas pelo bordado, sem efetivamente gerar um benefício às associadas.
A Autonomia através do Bordado
“Se você perguntar a um jovem ‘Por que você não borda?’ Ele vai dizer: ‘Ah, minha mãe nunca enricou!’. Você sente mesmo que a pessoa só não faz porque viu que a mãe não teve resultado. E teve! Porque se você perguntar a mãe lhe responde que teve: ‘Ah, eu criei meus filhos… meu marido era muito (>>>) e eu pegava aquele dinheirinho, comprava o leite…’. Se você perguntar às mais de idade, elas respondem assim.” Dona Lúcia
Fica claro que bordar é um trabalho que gera renda às famílias da cidade, mesmo que todas as entrevistadas morem com familiares que também são responsáveis pelo custeio da casa. Ainda sim, em muitas conversas informais com moradoras da cidade surgiram reclamações sobre o valor pago e a falta de valorização do ofício. Muitas delas deixaram de bordar por considerarem que o trabalho não compensa ou por problemas de vista. Todas as nossas entrevistadas também nos disseram que as pessoas da cidade não consomem produtos bordados e só encontram reconhecimento fora.
Apesar disso e de poucas pessoas jovens envolvidas na cadeia produtiva do bordado, o que encontramos foram mulheres orgulhosas de seu trabalho, que reconhecem conquistas possibilitadas por bordarem.
Dona Nete ensinou suas filhas a fazerem bainha assim que se divorciou do ex-marido e, com muito orgulho, nos disse que, depois que elas aprenderam, nunca mais ela precisou pedir nada a ele. Também nos disse que:
A primeira coisa que eu fiz foi uma “rosa de mimoso” e foi rápido! Parecia assim que era o meu dom mesmo pra bordar que foi rapidinho. Na outra semana eu já estava bordando pra ganhar meu dinheiro. Então foi maravilhoso! na outra semana eu já tava ganhando meu dinheirinho com bordado e até hoje… (…) Casa e bordado. Tem uma coisa que eu gosto que dá pra conciliar as duas coisas, né? Eu tô em casa, tomo conta da casa e bordo. Então pra mim é ótimo.
Maria da Paz alterna o bordar com a atividade de agricultora. Borda nos horários de sol forte e nos dias de chuva. Ela tem cadastro de artesã e garantiu seu direito de expôr na FENEARTE como trabalhadora rural. Nos contou que foi construindo seu próprio jeito de bordar, que começou a distribuir mais os bordados na peça para que fosse mais rápido, também a aumentar e aprimorar as bainhas, que são mais rápidas e não gastam material. Ela borda desde os 11 anos e entende que foi o bordado que lhe deu independência desde então:
O bordado ele me dá independência desde os 11 anos. Pai só dava uma roupa a nós, aí pai dava roupa de festa e de São João, aí eu comprava mais uma roupa com meu dinheiro do bordado. Aí eu sempre, assim, fiz as duas coisas, ia pro roçado mas quando chegava em casa, nas horas vagas fazia o bordado. Sábados e domingos que a gente não ia pro roçado a gente bordava. Aí eu conquistei minha independência à partir disso.
Alguns desses relatos nos mostram que o ofício não é apenas um hábito ou mais uma atividade cotidiana. O bordado, para essas mulheres, é um caminho de conquista de autonomia e de construção de suas identidades enquanto mulheres de Passira, mães, donas de casa, agricultoras, professoras, etc. Da mesma maneira que o bordado está entrelaçado com o cenário e a sociabilidade da cidade de Passira, está entrelaçado às vidas dessas mulheres.