Por Clarissa Machado
Fotos: Laura Melo
Fio vermelho que fia e desfia,
Monta a meada, enovela o fuso,
Impulsiona, tece e desenrola a história
O crochê está presente em Macaparana desde sempre. Aqui não cabe datas ou qualquer cronologia da existência da atividade manual exercida por muitas mulheres nas ruas, casas e sítios. Sendo assim, o recorte aqui presente se dará por meio das narrativas de vida de mulheres crocheteiras, que gentilmente cederam suas histórias. E contar essas histórias requer escolher um ponto de vista.
O crochê surgiu na rua, com a vizinha, com a amiga da escola, com a mãe, com a sogra, com a filha. Assim é feito o crochê em Macaparana, como bem podemos ver nas falas da maioria das mulheres entrevistadas:
Aí depois eu vi as colegas fazendo croché e fui… curiosa, né? Fiquei muito curiosa e fui aprendendo. E aprendi assim, eu tinha dezesseis anos. Já aprendi em Macaparana. Com as minhas cunhadas e outras moças. Não. Só aquele monte de moça, aquele monte de moça fazendo croché na rua, mocinha (Dona Dedé).
Com dezessete anos eu fiz um curso de costureira. Costurei por muito tempo, mas fazer crochê eu aprendi, como disse a minha filha, eu aprendi com uns dez, onze anos; eu aprendi com as minhas colegas, fazendo aqueles paninhos pequenininho (Emília).
Já fazia crochê, eu comecei com sete anos de idade. Quem me ensinou foi minha mãe. Minha primeira peça foi uma colcha de casal, só que era um ponto bem facilzinho, né? Eu passei quase um ano, porque, como eu estudava, para não prejudicar o estudo, aí eu só pegava as horas vagas (Germana).
É costume, em Macaparana, a prática do crochê no fim da tarde, naquela hora em que o sol começa a esfriar e o movimento na rua fica mais intenso, quando muitas pessoas estão voltando pra casa, as crianças saindo da escola e as crocheteiras ocupando as calçadas com suas agulhas, linhas e mãos ágeis. Em Macaparana há várias ruas em que isso acontece. Há, por exemplo, uma rua chamada Alvorada, onde moram muitas crocheteiras. Sentadas em suas cadeiras, sozinhas ou acompanhadas, elas tecem almofadas, bicos, colchas e tantas outras peças. Cada uma carrega a linha e a agulha de maneira pessoal. Tem aquela que carrega seu material em uma caixa de sapato, tem a outra que o marido fez um suporte para que ela apoiasse a linha para que a linha não saísse correndo pela calçada, tem aquela que a amiga fez uma bolsa para carregar linha, agulha, tesoura e o que mais precisar. Germana contou sobre o fazer crochê na rua mostrando que este costume tem mudado de uns tempos para cá:
Porque, realmente, antigamente todas as pessoas faziam nas calçadas, antes das fábricas de costura, né? trabalhava na caçada, faziam dia e noite, era muito material, né, mamãe? tinha mais condições de comprar o material, e tudo o mais (Germana).
As fábricas de costura têm mudado o cenário na cidade. Muitas mulheres que faziam o crochê estão preferindo ir para as fábricas por terem uma renda mais fixa, enquanto que o crochê é comercializado de maneira autônoma. Sendo um produto manual, o crochê é produzido em um ritmo diferente das fábricas, e as crocheteiras só recebem depois de alguns dias, ao passo que nas fábricas o retorno é mais garantido. Contudo, Germana também relata que algumas mulheres ainda preferem o crochê:
Agora tem pessoas, assim, que, quando é casado, tem família, tem criança aí preferi tá em casa fazendo crochê, porque ali tá fazendo uma comida, cuidando da criança, cuidando da casa. Sabe dividir assim o tempo, né? E tá ganhando um dinheirinho, mesmo que seja menos, mas ajuda bastante (Germana).
Dessa maneira, o crochê, como muitas outras atividades manuais, é passado de uma geração para outra. A parceria entre mães e filhas no fazer manual é evidente na maioria dos encontros que tivemos. Germana e Dedé caminharam juntas entre o fazer e a venda de suas colchas, redes, almofadas; assim como Milene e Emília, que, em parceria, dividem o trabalho no sofá de sua casa. Renata, ao lado da mãe, também compartilha desta divisão, cada uma ao seu modo, produzindo as encomendas ou criando os amigurumis.
Essas parcerias têm muitos resquícios da trajetória dos ofícios manuais. Historicamente encontra-se muitos registros de atividades manuais sendo ensinadas e praticadas por famílias, e com o crochê isso não é muito diferente, embora, numa esfera global, não tenhamos uma exatidão sobre a origem do crochê. Lemes (2017), em sua pesquisa, mostra que, segundo Marks (1997):
a escritora e pesquisadora dinamarquesa, Lis Paludan, levanta três teorias sobre a origem do crochê. A primeira de que a técnica teria sua origem na Arábia, espalhando-se para o leste do Tibete e para o oeste na Espanha, de onde seguiu as rotas comerciais árabes para outros países do Mediterrâneo. A segunda, de que os primeiros indícios de crochê vieram da América do Sul, por uma tribo primitiva que utilizava adornos de crochê em ritos de puberdade. A terceira remete a bonecas de crochê originárias da China (LEMES, 2017. p. 36).
Os desdobramentos da origem do crochê se dão diante dos acontecimentos históricos que acompanham as dinâmicas mundiais, como guerras, colonizações e doenças, que transformam grupos e territórios e são inseridos em rotinas e modos de trabalhos. Lemes (2012) menciona rapidamente que, no caso brasileiro, o crochê tem sua origem no Nordeste, sem, no entanto, aprofundar a discussão.
Quando se trata dos relatos sobre o surgimento do crochê no contexto de Macaparana, porém, não há uma unidade. Mas sabe-se que o crochê é feito na cidade desde sempre. E é presente na rotina de muitas mulheres:
Tomo o cafezinho, pego a agulha e começo logo no crochê. A nossa vida é quase mesmo toda no crochê, né, mamãe? Às vezes a gente faz o almoço na carreira, às vezes a comida queima. Faz qualquer comida, mais rápido possível, pra poder voltar pro crochê. Porque, assim, o crochê se você pegar ele e for fazendo de pouquinho em pouquinho, você não faz. Ou você pega com aquela dedicação de fazer, principalmente a gente que trabalha pra vender, né? Então, num sai (Germana).
Dessa forma, cabe aqui mencionar que, em 2014, a cidade de Macaparana recebeu o título de “Capital do Crochê”. O título foi dado pelo deputado Antônio Moraes, e na redação do texto proposto consta a seguinte afirmação:
Por sua enorme contribuição para a prosperidade do Estado, merece Macaparana outro destaque na área das atividades comunitárias, por ser conhecida como a terra da renda crochetada, que teve seu ápice no século passado e voltando a ter fabuloso sucesso nos dias atuais, tornando-se um produto a ser exportado para o mundo inteiro (MORAES, 2014).
Conversando com as crocheteiras sobre o título, percebe-se uma lacuna entre a nomeação e a valorização desta atividade, como nos relata Milene: “aí assim, interesse, incentivo, a gente não vê. E valorizar? Só colocaram o nome que Macaparana é a cidade do crochê, e pronto. Mas, assim, incentivo, assim, valorizar… eu acho que devia ter mais valor pelo fato da cidade ter o nome da cidade do crochê”. Percebe-se também uma distância entre a obtenção do título e o reconhecimento como crocheteiras. A cidade possui um museu municipal que não traz em sua expografia nenhuma referência ao trabalho do crochê, e muito menos às crocheteiras que fazem da cidade a “Capital do Crochê”. O Museu Municipal Moura Cavalcanti é um museu tradicional, que conta a trajetória do homem e político Moura Cavalcanti e dos demais prefeitos da cidade.
Entretanto, sem depender de um incentivo do órgão público ou de um reconhecimento efetivo da participação cultural e econômica para a cidade, as artesãs produzem seu crochê criando suas próprias redes de produção, articulando, gerando emprego e renda para muitas mulheres. Dona Dedé, uma das mais antigas crocheteiras da cidade, conta que:
Cada trabalho aqui sempre é de uma pessoa diferente. Quando a gente arruma a loja bem arrumadinha, elas vêm e bota as pecinhas dela lá, quando a gente quer a gente tira e vai levar pras feiras e ganha porcentagem. E quando não tem o material, a gente dá o material e dá o valorzinho dela, paga por rolo. Desde que eu comecei, tem gente que faz comigo. Tem umas que moram na vila do Moura, que é muito longe. Cada rua que você passar aqui em Macaparana tem pessoas que fazem (Dona Dedé).
O crochê é feito com linha e agulha. A palavra crochê, também segundo Lemes (2017):
Em seu artigo, Marks (1997) informa que a palavra crochê vem do croc ou croche, na França, que significa gancho. E no antigo dialeto nórdico, gancho é krokr. A agulha de crochê tem, em sua ponta, um gancho que facilita que a linha seja puxada e permite o feitio do ponto (LEMES, 2017, p. 36).
A origem da palavra já facilita a compreensão sobre a execução da técnica do crochê. Uma atividade simples, que consiste em fazer pontos com a agulha e a linha criando uma espécie de renda. Os pontos básicos do crochê são: ponto baixo, ponto alto, ponto baixíssimo e a correntinha. Destes pontos temos as variações: o ponto-pipoca, ponto-sianinha, ponto-tela, ponto-trevo e uma infinidade de pontos e variações que vão mudar de nomenclatura a depender da região. Milene explicou como é feita a almofada, uma das peças mais produzidas em Macaparana,
Isso aqui, acho que vocês já viram muito na cidade que é muito produzido por aqui por Macaparana, se chama ponto-trevo. Outros chamam de estrela, eu não sei. Ele é feito em relevo, aí tem ponto-pipoca, né? Aí isso aqui é tudo feito em relevo, que é pelo ponto da parte detrás, aí ele é assim. Começa a fazer na rodinha, na correntinha do início, e por aqui vai fazendo. Na verdade, ele é um quadrado, para fazer uma almofada são quatro quadrados. O ponto-trevo seria isso aqui, um quadradinho, que chamam de square, na verdade. Esse aqui é o biquinho que a gente faz já prendendo as costas. Que as costas são em ponto tela, ou quadradinho, tem gente que diz quadradinho, mas eu chamo ponto-tela que é mais chique. As costas é em ponto-tela, aí a gente faz as barrinhas com um ponto fechado, que é pra prender o zíper, e ela fica assim, bem mimosinha. E esse biquinho é um leque com um ponto-pipoca em cima, e já é prendendo a parte detrás (Milene).
A partir da fala de Milene pode-se perceber uma diversidade de pontos e de modos de fazer. Sendo um trabalho que pode ser feito em partes, nota-se uma divisão na execução de algumas peças, principalmente naquelas que são feitas a partir de aplicações.
Divisão de trabalho
O trabalho das crocheteiras em Macaparana está dividido, em sua grande maioria, em três etapas: a entrega de material (o rolo de linha); na segunda etapa é feita a confecção da peça em si, que pode ser dividida em outras etapas: a peça é feita por mais de uma pessoa, ou na produção de uma peça inteira, conhecido como filé; e, a terceira e última, com a costura e os acabamentos.
Da entrega do Material
A prática mais comum para a produção do crochê consiste inicialmente na compra da linha e a agulha para executar os pontos, como nos fala Germana:
Para comprar material e fazer outra. Para dar trabalho a outra pessoa. Aí, então, a gente vendendo já dá o dinheiro àquela pessoa, já compra o material e dá mais emprego a outras pessoas e vende outras peças.
Com o material dado, cada mulher recebe por rolo de linha e não por peça produzida, assim, Milene, ao lembrar de quando começou a fazer crochê, conta:
Eu comecei a fazer crochê e daí então, eu comecei a fazer crochê pra Dona Ivonete, de Macaparana, ela dava a linha, o material, e a gente tecia a peça, e pela peça a gente recebia aquela quantidade x.
Da confecção da peça
Para se fazer uma peça de crochê, inicialmente as crocheteiras buscam as referências por meio de amostras, pela internet ou por gráficos de revistas.
As amostras são peças feitas em crochê, que servem de modelo para saber como serão confeccionadas as peças. São apresentadas como uma espécie de catálogo de pontos e modelos de peças de crochê. Na casa da maioria das entrevistadas as amostras estão guardadas de maneira afetiva, como uma lembrança das primeiras tentativas de fazer o crochê.
Outra maneira de buscar inspiração é a internet. As crocheteiras mais jovens se debruçam sobre vídeos e tutoriais a fim de contemporizar a prática do crochê.
Milene, que herdou o gosto da mãe de fazer roupas, conta de onde tira suas inspirações:
Esses shortinhos aí eu vi na internet, tá a sensação do momento, praia e piscina, esse short. Esse short se chama short freedom, um nome assim. Aí eu vi e comecei a fazer ele. Mas, assim, muitas vezes a gente faz as coisas por intuito de internet. Você vê ali, você gostou, e vamos lá. (Milene).
Sendo assim, a segunda etapa consiste na produção da peça. A peça pode ser feita por aplicação, que é feita por mais de uma pessoa.
Caso a peça seja feita por uma pessoa só, é chamada de “filé”, como explica Germana:
Esse quem fez foi ela e outra menina, porque aqui pode ser duas pessoas. Uma pode fazer isso aqui, e a outra pode fazer isso aqui. Crochê não pode fazer duas pessoas, o crochê, quando ele chama ‘filé’, não pode fazer duas pessoas, só uma, mas quando é aplicação pode.
A diferença entre o crochê de aplicação e o crochê filé é que o de aplicação é feito em etapas. No caso da almofada, uma pessoa faz o crochê da frente, outra faz as costas e outra pessoa faz a costura e os acabamentos. Já o crochê filé é feito por uma pessoa e é um ponto corrido, sem costuras. D. Dedé comenta que:
…só essas aplicaçõezinhas e trás, aí isso aqui outra pessoa pode aplicar, não tem problema outra pessoa aplicar. Agora, um crochê filé, não pode fazer duas. O ponto muda, já perdi croché até de uma pessoa só, mas já perdi, ela mesma mudar o ponto.
Da costura e dos acabamentos
A finalização da peça, quando é feita por aplicação, consiste em costurar as partes da peça, aplicar bicos e dar acabamentos, como colocar zíper e esconder as sobras das linhas. Milene, ao falar da parceria que tem com a mãe traz o seguinte relato
Eu faço com a minha mãe, a gente faz parceria, na verdade, quando é um trabalho muito grande, assim, tipo almofada, eu faço as frentes e ela vai fazendo as costas, aí às vezes a gente vai dando o acabamento, uma prega o zíper, e assim vai. Quando é uma peça grande, assim, tipo uma colcha, raramente a gente faz, hoje em dia a gente num faz muito não. Aí uma vai fazendo os bicos e a outra vai tecendo a colcha, aí, quando termina a colcha, prega o bico e já tá tudo pronto (Germana).
A produção das peças do crochê alimenta uma rede de mulheres que buscam no fazer manual uma fonte de renda. Nas narrativas dessas mulheres pode-se perceber a autonomia e a independência financeira com a qual, através do trabalho com o crochê, cada uma vem construindo seu modo de vida. Isso é possível de perceber na fala de Milene e Renata quando elas relatam o conforto e estabilidade que encontraram ao escolher trabalhar com o crochê:
Dava mais certo fazer crochê. Fazendo crochê eu estou no conforto da minha casa, ganhando pouco, mas é meu, mas pelo menos tem hora pra dormir, né? (Milene).
O crochê, assim, é pra meus gastos, minhas roupas, eu gosto de comprar muita maquiagem, e comprar linha, acho que eu sou viciada em comprar linha. Se você vê meu estoque?! (Renata).
A Agulha de Crochê
Para fazer o crochê é preciso ter uma agulha comprida, que tem em uma da pontas uma cabeça com uma espécie de gancho. Durante nossas conversas com as mulheres crocheteiras ouvimos algumas particularidades e adaptações sobre o uso da agulha de crochê, como nos contou Germana e D. Elza:
Não gosto de trabalhar com agulha quando ela começa a arranhar. Eu sempre gosto de trabalhar com agulha nova. Quando a minha começa a arranhar, eu já compro outra. Você pode ver que ela tá novinha. Nós pegamos pirulito, né? Aí a gente encaixa ele aqui, porque ela fica maior e pra gente fica mais pesado, então, nós temos a intenção de que ela faz mais rápido, por ela ser maior, a gente puxa o fio mais rápido. Antigamente elas tinham uma cabecinha, mas era muito pequenininha, a cabecinha dela, e sempre caia. Aí a gente coloca isso aqui (palito de pirulito), às vezes quando não fica, a gente queima e coloca pra encaixar. Uma pessoa aqui em Macaparana começou fazendo, só não sei quem foi. Essa agulha daqui, é outra, porque a mais velha é essa aqui. Eu uso duas, porque essa daqui é a que eu faço crochê mesmo. E essa aqui, é a mais fina, eu uso pra furar, porque tem etiqueta que é muito grossa, aí essa aqui não entra. Aí quando eu terminar aqui aí eu já começo com essa. Um dia desse eu comprei uma parecida com ela, mas eu não me adaptei, porque eu tinha perdido ela. e fiquei, ‘Meu Deus, onde foi que eu coloquei aquela agulha? E agora?’ Mas, aí, graças a Deus eu achei. É o maior cuidado com ela. Mas eu tenho que me adaptar com outra, né? Porque, se eu perder de vez? (D. Elza).
Já Renata mostrou as adaptações que ela tinha feito na agulha com cabo de escova de dente. A agulha do crochê tem uma numeração que corresponde à espessura da linha que vai ser usada. Germana explica o seguinte:
Nós trabalhamos com esse barbante aí, esse nobre, com tipo 02, já com essa linha aí fina tem que ser o tipo 06. Tem pessoas que gostam de trabalhar com agulha fina, nós gostamos de trabalhar com esse número. Que a gente acha que é o apropriado pra esse tipo de material. E o barbante seis ou oito tem que ser outra coisa. É porque cada número que ela vai diminuindo, ela vai ficando mais fina, entendeu? A dois, ela é mais grossa, a quatro é média, e a seis é mais fina. Então a gente trabalha com esse material aí com a seis. E esse aqui a gente trabalha com a dois. Tem pessoas que trabalha com a quatro, mas aí as vezes fica desfiando, puxando, o fio fica desfiando. Essa aqui mesmo eu acho apropriado para o barbante.
O fio Nobre é um fio produzido numa fábrica em Timbaúba, cidade vizinha a Macaparana. A maioria das crocheteiras utilizam esse tipo de fio para fazer o crochê, embora também façam uso de outros tipos de fios conhecidos no mercado. D. Dedé nos conta sobre a história da fábrica do fio Nobre:
A fábrica de fio era dessa Dona Laura Queiroz, ela tinha a fábrica, então, ela fazia em rede. ‘Rede pulsa’, era uma rede muito boa, muito bem feita. E ela tingia, acho que lá no Recife, as varandas, ela tingia várias cores. Então ela era dona da fábrica do fio e ele mandava fazer as varandas e as redes dela era exportada. A rede muito boa. Dona Laura ainda é viva, agora o esposo dela faleceu. Ela era do Recife, ela morava em Casa Forte, era dono da Usina Olho d´água. Era uma dessas donas da Usina, Laura Queiroz. Ela parou de fazer rede, ela separou do marido dela, aí ela deixou de fazer rede. Aí, quando ela parou, ela deu uma máquina a um funcionário, uma máquina pra outro, vendeu, e deu as máquinas. Aí eles começaram a trabalhar. Que já eram da fábrica mesmo, aí começou a trabalhar e fazer o fio. Aí a gente compra lá com desconto, quando a gente vai comprar lá doze rolo por oito e cinquenta cada um. Eu só compro por oito e cinquenta.
O crochê de Macaparana é um crochê de exportação. Ele é feito pelas mulheres de Macaparana, mas é consumido por outros fora da cidade. Existe algumas exceções, como no caso de Milene e Emília, que fazem roupas para usarem, mas em sua grande maioria temos um produto de exportação. D. Dedé e Germana contaram sobre como era esse vai-e-vem, carregando sacolas enormes com colchas, almofadas, redes e passadeiras que eram vendidas em várias outras cidades. Outras pessoas também comercializam o crochê para fora da cidade, no mesmo processo de execução: divide-se o trabalho entre as mulheres de Macaparana e uma atravessadora faz as negociações e as vendas das peças de crochê.
Um dado apresentado pelas mulheres entrevistadas foi a relação do trabalho manual com a terapia. Muitas relataram que o fazer crochê era o momento de desopilar a cabeça, de esquecer os problemas, de relaxar e sossegar a mente. O crochê é um trabalho repetitivo, que requer concentração para contar os pontos e executar a peça de maneira correta. Poderia se assemelhar a um transe meditativo em que, por intermédio da repetição, possam ser aliviadas situações de estresse ou tensão.
Termino este texto reafirmando que o crochê em Macaparana surgiu nas ruas, na casa da vizinha, com as amigas, com a relação de mães e filhas. O crochê em Macaparana é feito com muito carinho, cuidado e atenção de mulheres que se reinventam, que cuidam de suas rotinas, se divertem, trabalham, se reconhecem e se valorizam enquanto crocheteiras, mulheres e artesãs.
Os depoimentos divulgados começam a criar uma outra referência histórica, cultural, que até então estava circunscrita apenas a sua própria classe, pequenos grupos de amigos e familiares. A vida, as experiências, as lutas, as visões de mundo, o trabalho adquire um novo estatuto ao serem socializados. Transformam-se em documentos apresentando um retrato da realidade, que passa a disputar a hegemonia do imaginário social com outras versões/representações construídas de outros lugares e por outros interlocutores. A diferença significativa é que a fala, a história, a representação não estão descoladas do sujeito (…). Fortalece-se, dessa maneira, o campo da história como campo de luta. Registram-se, em um outro nível, os conflitos, contradições, diversidade, ausência de governabilidade que a própria realidade expressa, mas que, no entanto, os registros oficiais comumente insistem em esquecer (MONTENEGRO, 1992, p. 27).