Por Clarissa Machado
Fuxico, fuxicar, parece que essa palavra, que é substantivo, vira verbo e se faz ação nas mãos de mulheres artesãs. O fuxico é uma técnica que tem suas origens na cultura popular do povo do Nordeste brasileiro. Nas mãos de mulheres escravizadas, que aproveitavam retalhos e sobras de tecidos das senhoras de engenho, eram cortados pequenos círculos que eram alinhavados nas extremidades até formar uma trouxinha. Depois de finalizada, as mulheres uniam cada uma, criando diversos tipos de produtos têxteis.
Lourdes, mulher-artesã entrevistada nesta 3º edição do Mulheres que Tecem Pernambuco, nos conta que aprendeu com sua mãe a fazer fuxico: “minha mãe era costureira, dona de casa, fuxiqueira e bordadeira. Então eu aprendi todas essas coisas com ela. Que me valeu até hoje, que me valeu até hoje. Que aprendi, divulguei, e cheguei onde eu cheguei, porque fuxico faz parte, eu acho que da nossa vida, porque é ele que nos dá… não digo a você que é sustentabilidade, mas eu digo que é apoio pras coisas extras que nós precisamos”.
Esta escrita tem como proposta unir essa narrativa de vida ao fazer manual do fuxico. Criar um laço entre o que popularmente conhecemos desse fazer manual com a história de vida dessa artesã, que nos conta sobre o surgimento da técnica do fuxico. Lourdes diz o seguinte: “eu conheço o fuxico desde que o mundo é mundo, né? Fuxico não tem dono, foi criado, dizem uns que foi na Holanda, num sei de que lugar surgiu, mas que ele surgiu, ele surgiu”, e continua a nos narrar uma possível história do surgimento dessa técnica.
“Dizem que, não sei se foi Angolano, não sei o nome do país agora, não sei, eu sei mais a ‘história da baronesa’: sei que tem uma senhora que toda vez que ela arrumava a casa, segundo eu soube, não sei se isso é verdade ou não, ela jogava aqueles tecidos lá e um belo dia, aí tava um monte de tecido e faltou toalha de mesa, faltou alguma coisa assim dentro de casa, ela olhou assim pros tecidos e disse: “sabe de uma coisa, eu vou costurar esses tecidos”, e ela começou, e no lugar de ela cortar quadrados ela começou a fazer rodas [círculos], quando ela foi pregar, lógico que as rodas não combinavam uma com a outra né, se desencontraram, foi a história que eu soube, ela começou a franzir e puxar, franzir e puxar, puxava, entrava no meio, fazia outra, e… com isso ela fez um quadrado que serviu pra mesa, foi essa história que eu soube, agora se ela é verídica ou não…
Eu sei que, verídica ou não, valeu a pena, porque hoje eu sou uma boa fuxiqueira e faço trabalhos maravilhosos.”
Na tentativa de criar uma narrativa histórica sobre uma técnica têxtil, as informações se cruzam e se atravessam em memórias e histórias contadas por quem faz o fazer manual. Lourdes continua sua narrativa: “e, na época [em que aprendeu], a minha mãe era costureira, certo?, e ela costurava para o exército e eu tinha um vício triste de desfiar tecido pra fazer linha, entendeu? Aí, nessa época, minha mãe disse, numa dessas brincadeiras eu terminei prejudicando um trabalho dela, aí ela olhou pra mim e disse assim ‘olha, a partir de hoje você não vai mais desfiar linha, você vai aprender a fazer fuxico’ e eu disse ‘o que é fuxico?’, e ela disse ‘eu vou lhe ensinar’, aí o fuxico surgiu na minha vida dessa maneira”. Quantas meninas não aprenderam fuxico dessa maneira? Quantas mulheres hoje tecem seus fuxicos com as suas histórias de vidas, suas memórias e fazeres ligados a uma sabedoria passada de geração para geração?
Sobre o passo a passo, Lourdes nos apresenta de uma forma direta e objetiva o que sua mãe a ensinou: “ela pegou um copo, colocou em cima do tecido, cortou e franziu e puxou. Aí ela disse ‘a partir de agora você vai aprender a fazer isso e vai fazer que quando você tiver cem fuxico você me mostra’”. O fuxico está ligado muito a esse saber popular, ao que é ensinado no dia a dia de cada mulher artesã que se reinventa no cotidiano e na rotina do cuidado.
Hoje sabemos que algumas dinâmicas de vida estão mudando e novos modos de aprender uma técnica têxtil nem sempre é passada de mãe para filha. Vemos hoje, cursos, tutoriais na internet que aproximam saberes populares e que reinventam as formas de aprender. E para finalizar sua história, Lourdes nos contou: “Aí depois que eu fiz cem fuxicos, e ela disse ‘agora sente pra aprender colar, e colar sem deixar que as pessoas vejam o acabamento’. Então foi ela quem me ensinou, e o fuxico, na minha vida, surgiu dessa maneira, isso em 1978”.
O fuxico tem um significado particular e sensível na vida de Lourdes, nas histórias que ela afirma talvez não serem verídicas, na narrativa deste texto, nas descobertas do fazer e na insistência em realizar o saber popular do fuxico. Como Lourdes mesma diz, “o fuxico não é só o fuxico, o fuxico é criação, o fuxico é arte, é cultura, a gente tem que criar em cima do nosso território, não é verdade?, se em Pernambuco a gente respira cultura, por que não usar o fuxico como costura?”