Brenda, 46 anos

Brenda

Encontramos Brenda em sua casa, vestindo um vestido azul e tênis branco. Na sala onde realizamos a entrevista, havia uma estante repleta de sapatos variados, predominando os de salto alto e bico fino. Atrás dela, duas obras têxteis intituladas ELA e ELE – com a promessa de que a terceira, ainda em processo, está por vir e formará a tríade. Ao falar sobre seu trabalho, Brenda compartilhou seu processo artístico e seus interesses em temas como astrologia, astronomia, fantasia, viagens interplanetárias, e a arte como uma ferramenta para transmutar a realidade. “Eu acho que a arte contemporânea nos oferece essa possibilidade de mesclar as linguagens, de ampliar os limites. E eu acho que, sendo pisciana e gostando de viajar, eu viajo agora também pelas linguagens”, explica ela.

Sobre sua infância, Brenda nos contou que seus pais “acreditaram naquela história do médico: é menino”, e detalhou os desafios que enfrentou como uma criança trans que não correspondia às expectativas de gênero impostas. Contudo, ela também relembra seu primeiro contato com linhas e agulhas, quando começava a explorar o universo privado de sua mãe e tias nas atividades
domésticas.

Um dos momentos mais marcantes da conversa foi quando Brenda falou sobre sua experiência na Marinha, no Rio de Janeiro. “A galera fala de armário, mas no meu caso era menor, era um baú. Eu me coloquei no baú. Eu diria que eu me montei de homem, porque se a escola técnica foi um lugar para sair, para me entender como gay, a Marinha foi o lugar para voltar a ser o homem e colocar tudo dentro desse baú.” Ela também compartilhou como foi sua transição para o campo da beleza, trabalhando com cabelo e maquiagem, já reconhecendo a expressão artística como uma forma de se expressar.

A entrevista é longa e rica em detalhes, e vale a pena conferir a transcrição completa. No entanto, destaco dois pontos que me tocaram profundamente. O primeiro envolve o tênis e a estante de sapatos. Brenda compartilhou uma reflexão: “Tenho o tênis de corrida e social. Tu imagina o que é uma pessoa ter 50 pares de sapatos e não ter um tênis? Porque achava que o tênis não era algo para uma mulher como eu, porque o tamanho do meu pé é grande. Então, hoje, ser mulher, a mulher que eu entendo ser, é muita força para mim.” E, quando perguntada sobre o que é ser mulher, Brenda arremata: “Hoje, para mim, ser mulher é
uma grande interrogação.”

Aguardamos a terceira obra da tríade.

Por Lu Azevedo

Narrativa

Pisciana

Eu nasci em 28 de fevereiro de 1978. [és Pisciana?] Toda, totalmente. Eu fui dando uma olhada, vários ascendentes, transcendentes, tudo… está Peixes também. Eu amo. Ser Peixes e ser artista é algo como ser uma pessoa com a cabeça na lua; viver sonhando. Eu sou assim. Até mesmo quando eu vou para o cinema, ou para a literatura, eu quero coisas que estão fora da realidade em que vivo.
Eu acho que a vida do Brasil é tão dura, às vezes. Isso é tão ruim. Pela questão de ser uma mulher trans, mas também de ter nascido numa família pobre. Tem esses durezas. E, parece que quando eu quero sair disso, a literatura e o cinema me levam principalmente para temas de tipo astronomia, viagem interplanetária ou então conto de fadas, fantasia.

Inclusive, acho que nas artes eu também acabo sendo essa pessoa que não tem limites, porque, principalmente depois do mestrado, eu passei a estudar mais a arte cinética. Era onde eu trabalhava. Mas aí eu fui me ramificando por diversas outras linguagens e eu não vejo mais limite algum. Eu acho que a arte contemporânea nos oferece essa possibilidade de mesclar as linguagens, de ampliar os limites. E eu acho que, sendo pisciana e gostando de viajar, eu agora também viajo pelas linguagens.

a gente estava ainda na ditadura

Nasci [em Recife], em Casa Amarela. [O contexto] Em 1978, bom, eu não lembro muito do que era na época, mas se a gente pensar na história, a gente estava ainda na ditadura, uma verdadeira tristeza. Meus pais moravam em Sítio Grande, que é ali pertinho da Rural [Universidade Rural de Pernambuco]. É um dos bairros do entorno, mas os meus avós moravam em Casa Amarela e ainda hoje a casa está lá.

Então, eu costumava sempre vir de São Braz, de Dois Irmãos para Casa Amarela e era um lugar onde brincava muito, corria. Tinha muita criança naquela rua movimentada. Eu lembro muito claramente disso.

Eu estudei na Escola Clotilde Oliveira, que era do lado [da casa da avó] e as aulas de artes era bem interessantes, apesar de hoje entendê-las, a partir das Tendência Pedagógica, como puramente tecnicistas e aliadas à ditadura militar. A educação tecnicista baseava-se naquilo de colorir o modelo ou então aquele teatro que imitava as óperas, Dom Quixote, sei lá…essas obras clássicas. Em meio a esse contexto escolar, a gente vivia com muita dificuldade financeira e ainda hoje não nos livramos totalmente. Entretanto, se compararmos com a década de 90, estamos bem melhor. Então, é basicamente o contexto dessa época [Anos 19]70, 80, 90. A partir de 2000 é que a situação vai mudando um pouco.

eu fui criada assim

Na infância, tendo nascido como a biologia determina, como uma pessoa do sexo masculino, eu fui criada como as normas determinam. Mainha e painho ouviram a história lá do médico “Ah, é um homem, é um menino”… Há aquela projeção pro futuro, né?.

Meu pai é caminhoneiro e minha mãe dona de casa. Minha irmã nasceu primeiro e em vim em seguida . Assim, eu seria o menino que iria substituí-lo, ficar com o caminhão e dar continuidade… porque era uma sequência dos homens, dos ditos homens da família, e eles assumiriam esse lugar do motorista de caminhão. Cresci nesse cenário e passei boa parte da infância indo para a casa da minha avó, que era um espaço muito tradicional e machista, Ali imperava a norma onde o menino tem que ter o comportamento esperado para um homem e a mulher ter o comportamento dela. Eu era cobrada dessa forma, vigiada, controlada. Afinal, tinha uma performatividade considerada feminina, logo era sempre disciplinada. Ouvia o seguinte: “isso não é coisa de homem”, “não senta assim”, “não anda dessa forma”, “não fala desse jeito”.

O corte de cabelo foi uma coisa absurda. Eu lembro que essa foi uma das maiores agressões daquela época, porque eu não queria cortar o cabelo. Eu queria ter o cabelo grande e, às vezes, duas vezes por mês eu tinha que ir à barbearia. Era muito difícil, porque o lugar em si, a “barbearia”, que hoje não sei como funciona, pois não vou mais, na época era bem complicado. Ficava ouvindo aquelas conversas de homens machistas e além da agressão do cortar o cabelo, ainda tinha que enfrentar os olhares deles me fuzilando.

Já na casa de vovó existia um paradoxo: enquanto eu era disciplinada e os comportamentos criticados, as minhas tias me pegavam para fazer trabalhos domésticos com elas, do tipo limpar a casa. Quando comecei a estudar o gênero eu fiquei intrigada com esse detalhe: tinha que me comportar como um homem, mas podia ajudar a lavar a casa. Como assim? O Pierre Bourdieu fala desse lugar, do trabalho da mulher dentro de casa, interno, enquanto que o homem é externo, mais fora. Então, eu era cobrada para estar fora e herdar o caminhão, mas também era convidada a fazer o serviço de casa. Até hoje não consigo entender tal cenário.

a educação é heteronormativa e cisnormativa

Hoje, sabendo da minha transição para uma mulher trans, me pergunto se elas ficam pensando o seguinte: “será que aquelas faxinas contribuiram?” A gente sabe que não contribui ,né? Uma vez que a educação é heteronormativa, e cisnormativa e a simples existência de pessoas trans demonstra que ela não funciona. Então, o contrário também não funcionaria. O fato delas terem me colocado para ajudar a fazer as tarefas domésticas não contribuiu em nada para que eu tenha me identificado com uma mulher trans.
As relações não interferem. É uma questão de identificação. Seja você criada para ser hétero ou não. A minha infância foi muito marcada por esses eventos.
Na escola era complicado, porque os estudantes, os coleguinhas da escola, percebiam. Os meninos héteros são meio que treinados. A Amara Moira fala disso quando escreve que a criança, o menino, para se afirmar como homem, e hetero, machuca a criança que ele acha que é viada. Passei por tudo isso. Eu era machucada, não tinha amigos. Os professores não apoiavam. Eram então duas violências: na escola, público, e no privado, em casa. Só me sentia feliz e longe dos controles quando eu estava sozinha e me arriscava brincando com as coisas das mulheres que me cervacam, relatos que fazem parte da memória coletiva de todas as mulheres trans.
Muita gente conta que pegava o sapato da mãe, a roupa da irmã, colocava o vestido sempre trancada, escondidinha. Arrumava a toalha na cabeça pra simular o cabelo longo, porque o natural era sempre cortado. Eu fazia muito.

Na 3ª edição do projeto “Tramações: a memória e o têxtil” [livro], e no capítulo que escrevi, eu falo sobre essa época, quando em algum trecho do livro eu trago a memória do mexer na caixinha de aviamentos, de brincar com as agulhas, com as linhas. Momento que acredito que seja o primeiro contato com o têxtil. Hoje, relembrando o próprio textil e as narrativas autobiográficas, sei que as experiências que recordamos servem como um dispositivo de acesso a essas memórias e me fazem lembrar e crer que aquele foi realmente o primeiro contato com as técnicas têxteis. Na época, obviamente, não tinha essa percepção…não pensava nesse trabalho.

Escola Clotilde de Oliveira

Eu estudei na mesma escola desde a época do que a gente chamava de PROAP, a alfabetização, até a oitava série do ginásio. A minha escola era vizinha da casa de Vovô, enquanto que as minhas irmãs estudaram perto da casa de mainha, exceto pela minha irmã mais velha, que estudava nessa escola comigo. Somos um total de 5 irmãs e 1 irmão: eu, Denise, Patrícia, Rafaela, Raiza e Beto.

Eu estudava nessa escola, a Clotilde de Oliveira e era muito legal. Adorava ela pois era grande, tinha pátios enormes, muitas salas de aula, quadra para a gente fazer atividade esportiva e laboratório de música. Como escola pública, na época era muito legal.
Acho que para a proposta educacional daquela época, era bem melhor do que as de hoje, pois como estão sendo implementadas, essas escolas de referências e integrais são uma grande fraude, afinal não tem estrutura adequada. Então, estudando ali, eu estava perto da casa de Vovó e as minhas tias iam lá. Nesse sentido, a escola era meio que uma extensão da casa e tinha muito controle e muita vigilância. Além da agressão dos meninos, como eu já tinha falado antes.

papel de carta

Eu sempre fiquei muito com as meninas [na escola]. Eu sempre gostei de conversar com elas, de brincar. Tinha a história do papel de carta, não sei se vocês lembram. Então, a gente trocava papel de carta. Era uma loucura, porque eu, um menino, na época, junto com elas e colecionando papel de carta, minha gente!

As minhas irmãs colecionavam. Eu tentava entrar na história de colecionadoa na escola, porque não era permitido em casa. Na escola era mais fácil. Então, o que eu conseguia pegar das meninas, sem que elas percebessem, eu levava e ficava falando com as outras meninas das turmas. Tinham diversas coleções. Eu lembro que tinham até album. Tinha um tipo de papel, que era uma estética própria. Era um bem interessante, mas o fato de eu ter papéis de carta era muito estranho para o restante dos alunos.

eu gostava do menino

Falando da escola, eu lembro que a gente se conhecia muito bem, os coleguinhas e as coleguinhas, porque a gente ia crescendo, mudando de turma. Na época, e hoje, eu não reprovava. Sempre fui uma ótima aluna. Na verdade, não sei o que é uma ótima aluna, mas enfim, eu passava de ano. Então a gente ia amadurecendo e continuando juntas, as mesmas alunas e os mesmos alunos. As amizades se desenvolviam, e sempre tinha aquele menininho que alguém queria namorar. Isso era muito difícil pra mim, porque eu queria ficar com o menino e obviamente ele não queria ficar comigo. Ele, enquanto heterossexual, queria ficar com as meninas e eu não entendia. A gente não entende, né? Se hoje as pessoas têm dificuldade de entender o que é uma pessoa trans, imagine na década de [19]80 e 90 e principalmente pra a gente mesmo. Eu gostava do menino, mas não tinha a menor ideia do que era. Era bem difícil ver as relações acontecerem. As meninas se desenvolvendo, os cabelos crescendo, o corpo, os seios chegando, os quadris crescendo e isso não acontecia comigo. Era difícil ver os meninos percebendo esses detalhes e gostando. Os amores acontecendo e eu sem participar.

Além dos romances, a gente jogava queimado. Como era atividade esportiva mais comum, o queimado era um jogo de menina também. Não sei se vocês jogaram? E, tem uma questão muito difícil, assim, que até hoje eu fico tentando entender: porque um dos coleguinhas de escola era claramente um menino gay e era muito bom no queimado. Ele procurava a mim na hora de jogar bola e era sempre com muita violência. Procurava acertar o meu rosto. Queria me machucar, sabe? Dava uma bolada muito forte. E aí hoje, quando procuro entender, eu fico pensando: “gente ele estava tentando se agredir, né?” porque eu era a imagem dele. Eu era um espelho do que ele não gostava. E eu acho que a bola era só “Eu não quero isso, eu vou agredir”. Eu era uma bicha pintosa, sabe? De andar rebolativo, de falar gesticulando e de cruzar a perna como tu agora, Clara, e era isso. Era assim que me comportava e para as demais pessoas isso não era legal. As professoras achavam estranho, então a escola teve esse lugar d violência. Mas apesar disso, eu era uma aluna muito boa, tirava notas muito boas, me dedicava muito. Obviamente tinham disciplinas que eu gostava mais: matemática, física, tudo que era ligado a exatas eu gostava muito. Engraçado que a parte de arte não era… educação artística na época, né?, não era o meu forte. Era uma disciplina de passatempo mesmo. Assim ela era colocada. Então eu não dava muita importância.

Ginásio Pernambucano

Depois, quando eu saí da escola Clotilde de Oliveira, a coisa ficou ainda pior, porque estando nesse lugar de família pobre eu pensava na faculdade. Mas haviam muitas dificuldades, porque você precisa amadurecer e trabalhar, assim como pode continuar estudando? Então eu acabei indo pra o ensino técnico. Eu saí da escola e fui para o Ginásio Pernambucano e de lá para a ETFPE. Esse foi um momento em que eu me perdi, porque se eu tivesse continuado no GP da Rua da Aurora… Hoje fico pensando: sair de uma escola de bairro ali na Avenida Norte, em Casa Amarela, e ir para o Ginásio Pernambucano, gente sabe? Foi um salto enorme. Fiquei louca com a rotina de pegar o ônibus, a liberdade e a oportunidade de estar numa escola tão linda.

Eu tive um prazer pois estudava num dos cantinhos de frente. O canto superior, que também era uma sala. A gente andava e escutava aquela madeira rangendo. É muito lindo o Ginásio Pernambucano, mas eu fiquei pouco tempo lá porque eu pensando nessa coisa de ir pro trabalho, acabei decidindo fazer escola técnica e eu tentei uma vez, não consegui e aí fiz a segunda e consegui passar.

Escola Técnica

Eu fiz ETFPE (Escola Técnica Federal de Pernambuco). Foi ETFPE quando eu entrei e depois foi CEFET. Agora é IFPE. Não era governo Lula, meu bem! Não era governo Dilma, meu bem! Governos bons que hoje dão oportunidades de passar. Então, era uma escola técnica federal, um campus e pronto, e poucas vagas e era muito difícil passar. Era um vestibular do ensino médio, do ginásio na época. Então foi um grande momento para mim e para a família, quando eu conseguir passar. Tipo um prêmio por ter me dedicado e ter estudado tanto durante o ciclo anterior. Aí fui para lá.

Eu fui estudar eletrônica e não foi a minha primeira escolha. Eu queria estudar edificações, esse lugar das exatas, da engenheira. Ela queria ser engenheira [ri], jura… Se fosse a arquitetura, Clara, seria melhor, mas engenheira, ai, meu Deus! [ri bastante]

Enfim, fiz os quatro anos de escola técnica, me formei, mas eu não entreguei o TCC. Então eu saí como auxiliar técnica, mas a escola técnica foi muito libertadora, porque, assim como o Ginásio Pernambucano era longe, pensando que a escola do ginásio era do lado da casa das minhas avós, então era a extensão da casa. Já tanto o Ginásio Pernambucano e a escola técnica longe, eu meio que me soltei e aí, no final dos quatro anos, eu praticamente já me entendia. Na época, acontece muito com mulheres trans, a gente acha que é gay, a gente não entende. Hoje as meninas têm material, reportagens na TV, as próprias redes sociais com perfis de mulheres trans, o YouTube. As crianças se identificam, na época não.

A experiência que eu tinha com mulheres trans era o quê? As travestis da Mário Melo, que eram tudo que eu não queria ser, porque era um lugar e ainda é um lugar discriminatório. Então, a gente não queria, não queria estar naquele lugar. Sofrer o que elas sofrem.

Passei sete anos servindo a Marinha do Brasil

Então, a escola técnica foi esse lugar pra me entender como gay; fazer algumas amizades e descobrir algumas coisas. Mas eu acabei me formando e não exerci a profissão. Fui para outro lugar. Fui pra o Rio de Janeiro ser militar. Passei sete anos servindo a Marinha do Brasil estudando de novo, porque lá voltei para a escola, dessa vez na escola de militar. E para aprender uma profissão.

Foi uma escolha para trabalhar, afinal o serviço militar era uma segurança financeira maior. Eu não sei se, me descobrindo como gay, os medos disso me fizeram achar que o trabalho como técnica não seria fácil. Então, eu decidi que precisava mudar me colocar numa espécie de baú. A galera fala de armário, mas no meu caso o espaço precisava ser ainda menor menor. Por isso falo de um baú.

Eu me coloquei nesse baú. Eu diria que eu me montei de homem, porque se a escola técnica foi um lugar para sair, para me entender como gay, a Marinha foi o lugar para voltar a ser o homem e de me botar dentro desse baú. E ai primeiro foi Natal [RN], pra aprender a ser militar. Depois voltei para o Recife e servi um pouquinho: 4 anos e meio. Depois fui para o Rio de Janeiro para estudar, pois a Marinha sempre foi um lugar de educação. Voltando para sua pergunta, Clara, porque a gente precisa estudar para aprender as profissões… A lida com o serviço militar requer especializações. E eu estudei hidrografia e navegação. Então, uma outra mudança de campo profissional. Se eu vinha de uma área de exatas, eletrônica, eu fui para um ramo da natureza e fui estudar hidrografia e navegação. Estudar o mar e a meteorologia.

Sobre a minha história na educação, e pensando agora que eu estou no campo das artes, eu tive essas viradas, né? De ser muito exatas, depois da natureza e agora das artes. Eu acho que era pra ter sido assim desde o início, porque é muito gostoso, sabe? Tenho um sentimento de muito prazer por estar aqui trabalhando [no Salão].

A beleza também tem esse lugar da arte

A beleza também tem esse lugar da arte. Se aqui no ateliê a materialidade são as linhas, as agulhas, a madeira, o bordado, a costura, no cabelo é a tintura, é a modelagem, é o corte, é o cabelo, é a pele para fazer a maquiagem. Vocês são o suporte, o cabelo é o suporte. A pele é o suporte, enquanto que a tintura, a própria água e os cremes são os produtos. Temos as técnicas e eu sou a artista desse trabalho. Eu hoje me vejo, por meio da educação, que é tudo isso também. A educação está imbricada nesse processo. Para concluir essa pergunta, posso dizer que eu nunca parei de estudar. Na verdade, sempre fui um amante da educação e hoje ela pra mim representa um lugar muito melhor, porque eu não só estudo, eu também educo e aprendo. É um lugar muito gostoso de estar.

O cabelo só se tornou um lugar profissional pra mim quando eu saí da Marinha do Brasil

O cabelo foi e é um trabalho interessante e tem ligação com a moda, né Lu [Azevedo, pesquisadora]? Quando eu cogitava assumir minha homossexualidade, eu sempre ficava pensando em opções de trabalho. Isso sempre uma preocupação. Ainda mais estando numa família de uma situação mais vulnerável financeiramente, uma classe pobre. Eu não sei se os ricos pensam assim, mas a gente pensa em trabalhar. Sendo uma pessoa gay muito pintosa as possibilidades são menores e elas estavam claras para min: moda e beleza. Eu lembro de uma conversa com um cabeleireiro maravilhoso, o Maninho, que dizia assim pra mim: “o dinheiro da moda demora muito a vir e você não tem esse retorno tão rápido”. Eu nem sei, na verdade, porque eu nunca trabalhei profissionalmente [com moda], mas uma coisa Maninho me dava certeza, como um dos grandes cabeleireiros na época de Recife: “que o dinheiro do cabelo é imediato, ele entra com muito mais facilidade e mais certeza”. Assim, anos após essa conversa, acabei optando pela beleza. Graças a esse diálogo, o cabelo se tornou uma possibilidade mais palpável.

Os anos se passaram e o cabelo só se tornou um trabalho profissional pra mim quando eu saí da Marinha do Brasil e me identifiquei como travesti. Na época era como eu me identificava. Em 2005, a gente já falava sobre as diferenças entre mulher trans e travesti. Achávamos que a mulher trans seria a que faz a cirurgia, aquela que é polida, sabe? Que se comporta. Aquela com passabilidade e que performa próximo da mulher cis, enquanto que a travesti era aquela que era caricata, prostituta, roupa curta e não era operada, entende? Pra ser mulher trans tinha que operar. Então, eu me identificava dessa forma [como travesti]. e quando voltei para o Recife a nova identidade veio junto.

Um pouco antes, quando cheguei no Rio de Janeiro, já trazia esse desejo pelos cabelos longos. Distante de casa, tve coragem de deixálos crescer, mas não pude por conta de rigidez das forças armadas. A Marinha trouxe de volta o controle da infãncia, como for a a escola vizinha de casa me controlava, depois o Ginásio Pernambucano e a escola técnica foram me soltando e no Rio de Janeiro minha vontade de mudança foi ainda mais longe. Então a performatividade de mulher foi surgindo, apesar de não entender o que se passava comigo.

desobedecer mais esse gênero compulsório

Além disso tudo, tem a questão do sexo e tem essa história de que a Marinha…, enfim… Tem essa história porque os navios passam dias no mar o que envolve sexo, obviamente. Não sei como é nas outras Forças, mas na Marinha tem mesmo, apesar de ser extremamente proibido. No interior dos quartéis e navios não existe qualquer possibilidade de relacionamento. Não só homoafetivo, mas héteroafetivo também. Mas acontece. E aí, quando eu cheguei lá, estando mais distante, sendo essa bicha mais pintora, que já tinha se soltado um pouco desde a escola técnica, porque eu saio da escola técnica e vou pra Natal, depois volto pra servir durante três anos. Mas, quando vou para o Rio boom!, explode, né? E lá eu começo a conhecer outras bichas que, como eu, também estavam longe de casa e podiam performar mais à vontade, ser mais transgressoras, desobedecer mais esse gênero compulsório. Essa essa moldura mas clina que colocámos compulsoriamente. Uma roupa azulada [apontando uma obra de arte sua], pensando aqui agora nas cores, trazendo esse significado das cores, e essa corrente, trazendo o têxtil que envolve o termo cis.

Conhecendo essas outras pessoas lá [no RJ], eu fui me sentindo mais à vontade e uma delas foi a Bruna. Ela se montava de drag e era uma montagem muito feminina e eu fiquei amiga dela. A gente se conheceu na Escola Naval, na escola onde se formam os oficiais comandantes da Marinha, imagina!

Várias coisas aconteceram e acabei morando com ela. Foi nesse convívio ali, muito íntimo, que eu fui meio que recebendo aulas, entendendo como que existia a possibilidade de ser uma travesti e que não fosse com as meninas que eu via na Mario Melo [Rua de Recife]. Eu tenho muito cuidado quando eu falo isso, porque não é pra colocar as meninas que estavam na Mário Melo e nem as que estão agora, num lugar inferior ou de erradas de estar al. Não. É entender que na época eu enxergava daquela forma porque eu não entendia e a gente não tinha essas discussões que tem hoje.

uma performatividade bicha, pra uma performatividade travesti

Então, eu vi lá no Rio de Janeiro uma possibilidade de ser e existir diferente daquela. Eu comecei a enxergar uma possibilidade de transitar de uma performatividade, agora bicha, pra uma performatividade travesti. Apesar de saber o preço que eu pagaria, porque quando eu comecei a performar de forma feminina, não consegui separar a pessoa militar e a pessoa travesti que a cada injeção de hormônio se formava com mais clareza. Duiferent de mim, tinha gente que quando cruzava o portão do quartel meio que vestiam uma roupa, uma performatividade adequada. Era como se tivesse um cabide um cabide ali onde a pessoa colocava a roupa e entrava. Depois, quando saía… eu não conseguia. Tanto que quando eu fui criando mais coragem, fazendo as terapias hormonais e coloquei silicone no corpo, isso tudo lá no Rio de Janeiro e servindo [na Marinha, não folgava a roupa pra esconder essas mudanças corporais. Pelo contrário, eu apertava. Tipo assim, eu tomava hormônios e os seios começavam a brotar; eu botava uma camisa mais apertada e ficava aquele mamilo. Era uma loucura na hora da saída [ri]. Vocês não têm noção de como era louco aqueles mamilos apontando e os outros militares vendo. Quando eu coloquei o silicone tudo piorou, poi o corpo modelou e aí foi uma loucura. Nesse ponto não deu mais pra ficar e eu tomei a decisão de sair [da Marinha]. Na verdade, ou eu saía ou eu seria expulsa, porque os oficiais já entenderam o que estava acontecendo e eu não fazia mais atividade física. Não ia mais à piscina porque eu não poderia botar maiô nem tampouco botar uma sunga. Afinal naquele momento, seria um topless, né? Então, chegou a um ponto que tanto eu quanto a Marinha entendemos que não dava mais. Eu “dei” baixa e voltei para o Recife.

Na verdade, eu tive que colocar a Brenda de novo para a volta do baú

Foi quando eu entendi que agora era a hora da cabeleireira e decidi voltar a estudar, voltar para a escola. Foi inicialmente no Bazar do Cabeleireiro, o primeiro curso que eu fiz. Três meses de curso intensivo e sai de lá achando que era cabeleireira. Mas na verdade eu não sabia era de nada [ri]. Percebi isso quando pintava cabelo e deixava a testa do povo hiper suja [ri], cortava cabelo todo troncho/ torto. Então foi assim que o cabelo foi chegando como profissão. Foi como surgiu uma possibilidade de trabalhar que não fosse ir para prostituição. Fui trabalhar em salões de amigas pra pegar a prática da coisa. Pouco tempo depois, acho que em 2008, eu estava com meu salão já pronto.

Um pouco antes, eu fazia esse caminho de ida e volta [Rio de Janeiro e Recife]. E, como estava nessas mudanças de terapia hormonal e de colocar silicone no corpo, era muito louco porque eu voltava para casa os meus pais e ninguém entendia nada. E assim, eu estava tão empolgada, a Brenda tão ali presente. Uma loira que tinha olho claro. Assim, ela nasceu loira de olhos claro, ela tinha uma lente de contato. Desse modo voltei para casa. Imagina, eu botava lente de contato. Gente! Meu pai, um caminhoneiro [ri]! Tem noção do choque? De mamilo aparente na blusa, pois eu era louca e nem botava uma bandagem. Acho que ninguém entendeu nada do que estava acontecendo, né? A criatura militar e está desse jeito, como assim?

Na verdade, eu acho que eles já foram se ligando, mas quando eu voltei, teve um agravante, porque eu não voltei bem fisicamente e nem mentalmente, o que não tem nada a ver com a saída em si [da Marinha]. Tem a ver com a história de dependência química que aconteceu lá porque associada à prostituição, eu estava usando drogas químicas.
Gata, eu estou falando de droga química. Então aconteceu uma dependência e houveram algumas tentativas de suicídio, quando eu tive que ser hospitalizada e tudo. Eu voltei assistida, precisando de assistência psicológica e psiquiátrica. Tudo isso veio dessa forma e junto com a descoberta da transexualidade, eles descobriram que eu estava doente. Foi uma barra.

Na verdade, eu tive que colocar a Brenda de novo de volta ao baú. A minha trajetória teve muito essa coisa de entrar e sair desse baú quando eu voltei pra casa, pra poder ter esse apoio, porque eu precisava. Eu tinha acabado de sair de um trabalho que me era super confortável, porque eu era uma funcionária pública que recebia minha grana todo mês com assistência médica garantida.

Estava num lugar muito confortável. Mas eu não aguentava aquilo porque o trabalho como militar não era compatível com a Brenda. Não dava “match” de forma alguma: Brenda e a Mariinha. Então, eu tive que colocá-la de volta no baú para poder ficar com meus pais, porque eu não tinha mais trabalho, eu não tinha mais grana. Eu não tinha mais saúde. Para poder ficar ali, eu tive que voltar para o baú. Eu consegui entender que era uma caminhada que eu precisava fazer de novo até conseguir a estabilidade financeira e esse entendimento dos meus pais para que “ó, a gente pode ter uma filha travesti” pudesse ocorrer gradualmente. Isso foi acontecendo no trabalho da beleza,. Por isso eu devo a beleza o conforto que eu tenho. Falo do conforto de puder ser/ performar tranquilamente, porque o trabalho com beleza me deu a estabilidade que eu precisava e a grana que precisava.

E não é 1000 maravilhas, mas eu consigo habitar, eu consigo me alimentar. E hoje, claro, com o Zé Carlos, meu marido, ficou bem melhor, porque são duas pessoas. Naquele momento, sozinha, foi o cabelo que me proporcionou poder sair da casa dos meus pais, poder ter uma segurança de trabalhar e esse trabalho me possibilitar uma casa, porque eu entendia que não dava para ser Brenda dentro da casa dos meus pais.

Eu não precisava mais ir para o Rio de Janeiro pra ser Brenda. Dava pra ser aqui e eu fui mostrando pra eles que era possível ter uma filha trans. Enquanto eu estava lá, habitando a casa deles, trabalhando e conquistando o meu salão de beleza, eu ia aumentando a pinta, ía performando cada vez mais feminina. Não foi aquela coisa brusca da chegada. Eu era uma pessoa militar que chega travesti e doente, sabe? Como antes, quando tinha saído de uma instituição para tratamento psiquiátrico. Naquele instante, não era uma pessoa que conseguia uma estabilidade profissional e aumentando a pinta, eles iam se acostumando com isso até que eu consegui morar no espaço onde eu trabalhava.

"Studio Brenda Bazante"

Eu criei uma espécie de flatzinho onde eu habitava e trabalhava. Como é aqui [na sua casa, onde estava sendo entrevistada]. Era na entrada do Vasco da Gama. Ali na Avenida Norte. Era uma sala comercial e eu adaptei, fiz um flatzinho. Então, esse sofá cama que você está sentada, Lu, era onde eu dormia e aí, eu acordava e desmontava para as clientes entrarem e sentarem. Também tinha uma cozinha americana e o flat era um espaço delicioso. Eu passei três anos lá. Na época, era “Via Persona Hair Designer” [ri]. Depois ficou “Studio Brenda Bazante”, que é o nome que uso até hoje.

Eu acho que algumas amizades eu coloco [como apoio]. Uma travesti que eu conheço até hoje, a Nanal. O espaço dela foi o primeiro salão de uma travesti, onde eu trabalhei e ela foi esse ponto de apoio dentro da população de pessoas trans e travestis, para entender, inclusive, como era essa população aqui em Recife. Digo isso porque eu não tinha amizade quando eu viajei pro Rio de Janeiro entre mulheres trans. Tinha lá [no Rio], mas em Recife, não. Mas quando eu voltei, eu precisava me ressocializar com essas pessoas. Nanal,a Renata, foi esse ponto de apoio. E na família, as minhas irmãs me pediam para fazer o cabelo delas. Dessa forma, o cabelo novamente foi esse esse meio de aproximação, porque ali, na intimidade do lavar, do pentear, do escovar, do mudar a cor, de mudar a forma, a gente ia conversando também. É um lugar muito feminino, o Salão. É um lugar de intimidade, um lugar de conversa entre mulheres e entre homens e mulheres. Eu acho que foi um lugar onde elas foram me entendendo e as minhas irmãs foram também, eu acho que, trazendo a minha mãe. Com relação ao meu pai, eu acho que é um relacionamento mais difícil. Não sei se ele me chama de Brenda. Não sei se ele me chamaria de filha. Eu acho que ainda não. O que eu sei é que ele é um amigo ótimo do Zé Carlos. Quando eles se encontram, eles batem papo assim, maravilhoso, e ele sabe que nós somos um casal. Então, tenho um pai que aceita o marido da filha dele, que eu não sei se ele acha que é uma filha. Porém, o fato de haver essa relação, pra mim e dizer que está tudo ok.

Eu nunca dei cantada em homem nenhum

Na infância e adolescência já havia esse desejo por homens. Era justamente a época dos News Kids on the Block, Menudo e aqueles boyzinhos. E o meu tipo de homem é o tipo do meu marido. Sempre foi. Sexualmente eu sempre tive essa atração por esse tipo branco, se fosse loiro, ainda melhor. Eu não questiono isso e não levo pra esse lugar de discussão sobre sobre raça, etnia, não. É o meu corpo que reaje sexualmente, então não discuto e só aceito, vou fazer o quê? Eu acabei casando com um homem dessa tipo físico, ótimo. Pra mim, pela questão sexual, me dá mais tesão. Então, pronto.

Mas antes disso, cm relação minha sexualidade, o sexo foi uma coisa que demorou muito a acontecer. Tipo, eu perdi a virgindade numa sauna gay no Rio de Janeiro, um lugar escondido e aconteceu com outras pessoas que estavam trabalhando. Ou seja, com garotos de programa, os GP’s.

Sempre tive muito medo. Eu nunca dei cantada em homem nenhum. Sempre fui a pessoa que olhava, obviamente, mas esperava que eles tomassem a atitude, porque depois ele não ia poder dar um murro dizendo que fui eu que fui lá dar em cima dele. Eu sempre achei que se eu fizesse isso poderia ser violentada. Porque dizem: “ó lá o viado, a travesti dando em cima de mim”. Por isso ficava quieta e deixava acontecer. E aconteceu diversas vezes.

Como travesti eu descobri o quanto o sexo ele é presente. O corpo travesti é o objeto de desejo sexual para homens 24 horas por dia. Se a gente quiser, a gente transa o dia todo, todo dia, sabe?

É incrível como existe o preconceito

É incrível como existe, por um lado o preconceito e por outro o fetiche, né? Esse corpo sexualizado ali o tempo todo e homens que são preconceituosos, principalmente diante do público, mas no privado, eles estão super afins. Enquanto estava fazendo prostituição lá no Rio de Janeiro percebi que o tesão e o desejo são enormes e chegam ao ponto de eu ter presenciado questões assim: um cara passava com a namorada andando ou num carro, tirava onda dizendo o seguinte: “João, não sei o quê” – eles gostam de chamar de nomes masculinos, ditos masculinos – mas depois de deixar a namorada em casa, essa mesma criatura voltava e contratava a travesti para o programa. Tipo assim passava com a namorada, agredia pra marcar esse lugar de macho, como a Amara Moira fala. Segundo essa autora eles dizem o seguinte: “ó, eu sou homem, porque eu xingo a travesti, a bicha, então eu sou homem”. Falam que são homens porque xingam a travesti. Vejam qu conradição, deixavam a namorada em em casa e voltavam. Voltavam, paravam e pegavam a que xingou. Aí, leva para o motel ou no carro. E é o quê? Passivo.

Tudo isso é uma loucura. Mas quando a gente entende, se acalma e se pergunta: “ah, é isso?” Aceita e segue em frente. Eu fui uma pessoa que viveu esse contexto e transou assim por anos. Agora casada, eu estou muito quietinha, muito satisfeita, sabe? Não sei até quando, mas estou vivendo essa felicidade. No passado, eu tive sim uma vida sexual muito ativa, sabe? Acho isso massa, não tinha problema nenhum e nem aquele que algumas pessoas discutem ao dizer o seguinte: “ah, você está sendo usada”. Eu usava eles, usei o máximo que eu pude e tive homens que eu desejei muito. Não, não era aquela que tinha todos que eu queria, não. Mas tive muitos que eu queria, muitos que eu desejei. No entanto, era sempre relações muito próximas as da sauna lá no Rio de Janeiro, do tipo, quando a gente ia pra… Não vamos dizer os nomes [ri], mas ninguém é obrigada a também não dá pistas para que eles também sintam um pouco de mdo de ter os seus desejos revelados. Iraqs [bar de Recife] da vida, por exemplo. [Rua] Mamede Simões, Lesbian [Bar] sempre acontecia de…

Acho incrível, e horrível ao mesmo tempo, como muitos [homens] fazem isso com vocês mulheres cis, afinal era sempre a história: no final da noite, na saída, entendeu? Ou então era seguida quando estava indo embora. Raros são aqueles que dão em cima e ficam na frente de todo mundo. É nesses lugares, sabe? Ou então é no meio da rua quando somos seguida, paradas. Assim, o sexo foi um atividade muito presente em vários momentos, de várias formas, como gay, na época que eu me entendia gay não era tanto, mas depois, enquanto travesti, acontecia quando eu quisesse. A qualquer momento.
[Os afetos] Aí é outra história, né? Sendo colocada nesse lugar de fetiche, o afeto não está presente, porque você é convocada apenas para o sexo. Mas pegar na mão e levar pra jantar é outra história.Se isso acontcesse aí a gente se apaixonava. Existe sim a paixão. Somos de carne e osso. E você, mesmo tendo só o sexo, você se apaixona. Mas até que ponto isso é correspondido? Eu tive alguns relacionamentos, principalmente da volta pra Recife , em 2010 e até antes de casar, quando alguns foram públicos. Então, eu posso dizer que alguns eu tive retorno e aí eu fico até pensando: será que eu não tive retorno nos privados? Será que eles também não se apaixonavam? Será que eles não me correspondiam? Acredito que sim, mas o medo do julgamento era muito grande, porque o homem que se relaciona com uma mulher trans, não é respeitado como hétero.

A gente pode pensar no caso de Ariadna Arantes. Ela já operada, de nome trocado, tendo participado do Big Brother. O marido dela, na época, era chamado de bicha, de gay, como assim? Se ele estava com ela e a menina era uma mulher linda como é até hoje. Ela fez tudo que é pedido, mas o cara era chamado de gay, como? A resposa é aseguinte: ela é vista como um homem, pela sociedade transfóbica. Então, o medo desse julgamento, fez na época e faz até hoje muitos homens se afastarem das mulheres trans e das travestis. Realidade que não deixou de existir. Homens que se relacionam com mulheres trans e temem os julgamentos, precisam manter essas relações em segredo. Aí, o afeto eu acho que existe e existe só o fetiche. Eu acho principalmente na prostituição, existe essa atitude de homens. Sim, eles sentem tesão, gozam, e depois… dos dois lados. Eu conheço meninas que são isso mesmo, nesse lugar de usar os caras, de não “ah, eu tô sendo usada”. Você também está usando? Se Você está se deixando ser usada, porque acho que você também pode usar. Assumir esse papel de que “eu vou ter prazer”.

meu marido, Zé Carlos

Eu lembro dessa questão do afeto, de ouvir uma pessoa conhecida dizer que eu só teria um relacionamento quando eu encontrasse “um homem de verdade”. Foram essas palavras que ela usou. Mas esse homem de verdade que ela estava se referindo era uma pessoa que tivesse coragem, coragem de assumir publicamente o amor que sente por mim. Eu tive alguns exemplos e o mais forte dele foi o que eu tenho hoje do meu marido, Zé Carlos.

Eu conheci ele na Metrópole [boate de Recife], que era o último lugar que eu achava que conheceriam um bofe hétero. A gente se conheceu em 2016. E aí a gente já ficou, porque eu sempre fui essa pessoa que não teve problema nenhum de ficar e transar no mesmo dia em que conheço a pessoa. Nunca tive… vai que eu não gosto da coisa, vou ficar alimentando aquilo? O sexo para mim é importante e precisa estar na relação. Ele é importante. Então assim a gente já se conheceu nesse primeiro dia e já foi… ok.

E seguida, a gente foi se conhecendo, foi aumentando a intensidade e a gente tá até hoje. Ele foi muito corajoso, porque é difícil, sendo um professor da educação básica e sabendo que viver com uma mulher trans poderia acarretar problemas no trabalho. Mas ele é um cara muito guerreiro e até hoje a gente enfrenta isso juntos. Não vou dizer para vocês que não exista momentos de olhares, porque existe. Não só por ser uma mulher trans, mas porque eu tenho 1m83 e sou bela, tá? Então as pessoas olham pra mim não só porque eu sou trans, mas porque eu sou bela também.

E eu entendo isso numa boa, afinal formamos um casal bonito que as pessoas olham. Mas, tem gente que olha com preconceito mesmo e eu fico imaginando que deve ter o seguinte pensamento: “como que um cara bonito, que é professor, está com uma travesti?” Deve ter esse questionamento, mas eu não estou nem aí pra eles. Por que bobo é aquele que tem amor, tem tesão por outra pessoa e não vive. Deve ser muito frustrante você desejar uma mulher trans e querer viver esse relacionamento, mas n. Ficar se enganando, enganando uma mulher cis, forma família, tem filho e eu imagino como, como deve ser a qualidade dessa relação sexual, afetiva. Que pai é esse? que que vão ir em frente. Viver se enganando, enganando o restante da família pra manter uma convenção que diz que o homem cis casa com mulher cis, tem filho. Enfim, essa normatividade toda a qual muita gente está presa.

Eu não sei se vocês achavam que a gente ia entrar tanto em gênero e autobiografia desse jeito. Durante muito tempo achei difícil falar sobre isso, mas eu acho importante o meu relato ser exposto, porque deve ter tanta menina que vive a mesma coisa e não tem coragem de falar. Acredito que quando você vê ou escuta alguém falando, a pessoa deve se fortalecer.

Tramações

O projeto “Tramações” foi muito importante porque eu não tinha a menor noção de que eu estava trabalhando com o têxtil, e achava, na verdade, que têxtil era só bordado e técnica de bordado mesmo, sabe? O ponto. Ou então ligado só a roupa propriamente dita. Foi no curso [de Artes Visuais], que a Marina, acho que é a Marina Soares, me provocou a pensar sobre minha prátca como textil ou não.. Porque eu digo: “eu não sei se eu estou trabalhando com têxtil”. Porque essa peça [mostra uma obra], essa peça aqui, que é a peça que eu levo pra o Tramações, foi a primeira peça que eu comecei a entender que eu estava fazendo arte textil. Foi a primeira peça que eu fiz, entendendo-me como um artista têxtil também.

E a primeira questão era o porquê? Essa peça começou com essa parte quadrada. Essa parte que é a base por onde eu passando linha. Eu fiz a pergunta durante o curso “Será que eu estou trabalhando com o têxtil fazendo isso? Ou será que para ser têxtil eu preciso bordar sobre um tecido um ponto muito específico de uma técnica de bordado? Pensando, inclusive, no fato de eu trabalhar com uma linha de uso geral e não uma específica de borbado. Eu nem trabalho com meadas, pois imagina o quanto eu gastaria de meada para fazer isso? Então, Marina vai e fala “será que você não tá realmente trabalhando com têxtil?”. Foi aí que ela me faz pensar sobre o assunto.

Esse momento foi muito massa. Inclusive Luciana Borre, minha orientadora do mestrado, começou a dar aquelas referências pra gente. Referências de quanto o têxtil não é só realmente ligado ao bordado. Aí eu fui abrindo meu olhar e percebendo, porque inicialmente a primeira peça foi um bordado.

eu chamo esse conceito de "Trava transcorpocinética"

A primeira peça, esse protótipo, está muito ligado aos móbiles que eu fazia, ao meu trabalho com a arte cinética, porque eu usava a linha só como um elemento de ligação para unir os pontos ou pra pendurar alguma coisa. Era só assim que eu via a linha e não como um element têxtil. Eu não pensava na época em nada têxtil. Não associava o fato de usar a linha como uma prática da arte têxtil. Nem da linha estar aqui [na peça que ela mostra], no caso, representando muito mais do que só um elemento da composição. Porque aqui eu vejo o elemento corpo, o sangue, a carne. A cor do elemento associada ao que ele tenta representar.

Está tudo associado ao motivo pelo qual eu trouxe a técnica cinética. Pensando em volume virtual, pensando no que [Alexander] Calder trazia como referência para a gente. De que quando você gira uma peça cinética, você cria um volume através do movimento, um volume virtual. Eu dando, aqui, atenção para o formato circular.

O formato do seio, de um lado e do outro, mostrando que um seio difere do outro e você tem diferentes tamanhos na mesma pessoa. Não existe simetria. E as mulheres, cada uma tem um seio de tamanho diferente, mas aí também, juntando outras técnicas, pensando na esteriometria de Naum Gabo, onde ele pensa no interior das formas. Você retira as arestas de um cubo para ver o que tem dentro. Então, aqui eu retiro como se retirasse a pele para ver o interior do seio, né? E o que é que tem dentro do seio das mulheres trans para dar volume? O silicone, que é uma substância plástica. Aí eu entro com o isopor. Enquanto que você tem esse craft, a cor do craft como a pele, a estrutura, a madeira, os ossos, trazendo tudo e tudo isso para o protótipo para pensar o meu projeto lá no mestrado que era trabalhar com a criação de um conceito que ligasse a representação do corpo de mulheres trans. Das mudanças que fazemos no corpo e rlacioná-las com a arte cinética, com o meu trabalho na cinética.

E aí, eu chamo isso, esse conceito, eu chamo de “trava transcorpocinética”, pois a gente muda o corpo e isso é um movimento. O movimento desde um corpo menino ali aprisionado dentro da compulsoriedade e que vai mudando, né? Vai mudando a forma, a atividade, por meio dos gestos, da questão de como fala, de como anda, mas também do corpo. Tudo iso está no protótipo e no entendimento que existia na têxtil. Na técnica têxtil aqui pelo uso da linha e pela representação do que a linha queria trazer. Eu venho para o mundo, pra essa peça cinética que eu visto, que foi a grande transgressão, porque eu decido colocar ela sobre o meu corpo. Quando eu pensei na prática que eu traria pra o Tramações, pra a terceira edição, eu pensei que eu tinha que vestí-la. Como eu estava falando e performatividade, eu tinha que vestir. E aí eu pensei no seio. Qual elemento da mudança eu vou mostrar?. Aí eu pensei no seio. E, o seio que não está dentro do sutiã, ele está do lado de fora. E aí veio Indianara Siqueira, quando ela, lá no Rio de Janeiro, ela na Marcha das Vadias, ela põe o peito para fora e ela é presa.

E ela é presa por atentado violento ao pudor, por tá com o seio para fora. E é uma loucura porque a Justiça não sabe o que fazer, porque se ela é presa com o seio pra fora, ela está sendo presa como uma mulher, porque atentado violento ao pudor, peito pra fora, é classificado como transgressão para mulher. Mas se ela não é presa e ela tendo um visual feminino, é a justiça dizendo que age diferente para homem e para mulher.

Então, é como se diz: ela dá um bug no sistema jurídico. Então, através Indianara, eu decido botar o peito pra fora também. Só que eu boto um peito cinético, né? Um peito dentro do meu conceito de trava transcorpocinética. E entendo o potencial da arte têxtil na minha pesquisa, não só na questão de um elemento móvel, mas na própria confecção, na textura do material, nas cores, no entrelaçamento.

vidas trans precarizadas

Só que aí eu decidi experimentar com outra linguagem além da tridimensional. Eu decidi ir para o bi [dimensional] e acho que foi o que eu comecei a fazer. A obra não está mais aqui porque foi uma peça vendida [comemora]. Uma flâmula que eu fiz dentro da residência, com a Veneza Teimosa, com o Aslan Cabral e a Mônica lá no Ateliê Pangeia. Foi uma flâmula com a frase “Vidas trans precarizadas”. Par bordar, eu usei o ponto haste. Ela foi bordada em vermelho e linha vermelha. Achei que estava aqui o vermelho, e aí eu coloco “vidas trans precarizadas” e pergunto: você contribui para aumentar ou diminuir o peso que somos obrigadas a carregar? Eu bordo essa pergunta com o título “vidas trans precarizadas”.

Por que peso? Porque eu faço uma escultura em formato de uma bolsa. Uma bolsa de cimento com gesso e coloco pastilha de vidro espelho na pare externa. Então ela é muito pesada. Com isso, quero dizer que quando a gente transaciona, começamos a carregar um peso muito grande e que não é um peso que a gente cria. É um peso imposto a nós pelo gênero compulsório. Então eu pergunto o que é que as pessoas vão fazer diante disso? A confecção dessa flâmula surge após os sutiãs seios esteriométricos e a participação em Tramações, práticas que vão fundamentar e vão concluir a minha pesquisa no mestrado. Assim sendo, a arte têxtil é importantíssima. Depois, junto com a flâmula que é bordada em vermelho e preto, bordei essa outra flâmula [mostra outra obra]. Mas decidi emoldurá-la, entendendo que a gente tem o corpo instante compulsório. São duas com as inscrições corpo-instante compulsório e corpo-instante em libertação.

Eu divido a minha pesquisa em três grandes momentos: corpo instante compulsório, corpo instante em libertação e o corpo instante libertado.

Eu divido a minha pesquisa em três grandes momentos, que são: corpo instante compulsório, corpo instante em libertação e corpo instante libertado. O que é o corpo instante? É um instante em que o corpo se encontra, é a forma em que o corpo se encontra, é o tempo em que o corpo está. Então qual o “corpo instante compulsório”? É a minha infância e adolescência, o momento em que eu estou aprisionada ao gênero compulsório, aquele que me foi designado no nascimento. E como é que é isso? Cis/ Ele/ Dele. A cisgeneridade imposta compulsoriamente faz com que eu seja tratada como ele e dele. Pronomes, adjetivos. Foi aí que veio uma grande sacada do têxtil. Como usar as linhas, os pontos para trazer as técnicas têxteis para minha pesquisa de gênero? Foi quando eu fui conhecendo os pontos. Logo, o ponto corrente, aprisiona, né? Não tem nenhuma brecha, não fica nada para passar, você não consegue escapar.

Pensando nisso, eu bordo a palavra “Cis” cercada pelo ponto corrente. A cor, o azul royal, royal de monarquia, real de colonialismo, que vem junto o gênero. O gênero veio junto com os portugueses. Quando a galera nativa vivia aqui era outra história de gênero, é outra conversa e existem relatos. Existem gravuras que mostram o quanto. Principalmente os espanhóis foram violentos quando se embasaram na sodomia, pelo crime de sodomia. Eles foram extremamente violentos com as pessoas que encontravam exercendo relações homoafetivas ou performando com comportamentos ou performatividades consideradas femininas.

O castigo aplicado era jogar as pessoas aos cachorros. Existem gravuras que mostram a forma como as pessoas eram punidas e jogadas aos cachorros. O azul royal, que tem essa relação com a monarquia e com a Europa, para mim tem essa função de ligar ao gênero compulsório. Junto com esse pensamento sobre o azul ser para o homem e o rosa ser para a mulher, eu uso o azul para circular todo esse sistema que me considerou homem e me aprisionou. Por fim, uso a cor preta para bordar os pronomes ele e dele. Então é essa estrutura pesada, o ponto corrente que é usado no bordado. Eu acho que essa prática artística representa bem o momento em que eu comecei a entender como a arte têxtil poderia se ligar à minha pesquisa.

Depois dela vieram a prática na qual eu venho trabalhando com a técnica de papietagem. Inclusive, já é uma outra residência que eu estou fazendo. Pensando agora com os autores Joseph Albert e John Dewer e as suas escritas sobre a arte como experiência. Novamente trogo o azul e esse azul royal no meio. Mas é pra mostrar que mesmo na perfomatividade compulsória que a gente tem que ficar como menino, é diferente. Então, vários tons de azul. Existe o Royal, que é o forte, mas também outros… E a pegada, a pegada de um sapato masculino. Para marcar essa temporalidade, esse rastro, a pegada deixa uma marca que vai lembrar o passado. Afinal, uma passada foi algo que já aconteceu. Eu bordo aqui não mais com o ponto cheio que é fechado. Agora uso um ponto aberto e a técnica da pintura de agulha. Eu não quis usar cores que estão em sequência, como a pintura de agulha sugere. Eu quis deixar o preto pois ele tem mais destacar, mas tem o azul royal aqui [mostra a obra]. E também, mesma prática, mesclei a papietagem com o bordado e inclui a pedraria para representar um segundo momento. É o outro corpo instante. Não é mais o compulsório, mas é o em libertação. Onde eu trago o amor pelos sapatos e principalmente pelos scarpins. [olha pra seus sapatos e mostra] São cerca de 50 pares, eu já tive mais! Isso aí é pouco, viu? Era quase o dobro, mas eu fui exercitando o desapego. Esse momento é o da libertação, porque quando a gente transaciona passamos a desejar uma performatividade super feminina, sabe? Você quer é um cabelo enorme. Você quer o olho azul. Você quer ser super loira. Você quer ter um peito enorme. Você quer se maquiar muito. Você quer muito brilho e aí nada melhor que a pedraria, né?

Então, não basta ser um scarpin de onça, ele tem que ter pedraria também. Eu venho entendendo o bordado por essa perspectiva. Nesse caminho dos desejos pós transição. Ah, e o amarelo aqui, na verdade, eu quis dialogar com a pesquisa do Albers. Trazer a questão do contraste desses tons de amarelo e do dourado. Na onça e a estampa de animal print tem com o amarelo da pedraria, mas também o amarelo não deixa de ser uma cor que fica linda. O amarelo é na minha pele e na composição fica incrível. Eu quis trazer ele pra cá. Na verdade, na pesquisa de gênero, uma cor que vai representar todo esse contexto seria o rosa, porque quando eu comecei a bordar telas [mostra um trabalho em andamento] comecei uma série com os três corpos instantes: o corpo instante compulsório, pra esse tempo criança e adolescência aprisionada ao gênero; o corpo instante em libertação, para esse momento da forma performatividade travesti quando eu vou me encontrando e me entendendo; e depois um outro corpo, o corpo instante libertado, que é o hoje. Quando tenho contato com os estudos de gênero e começo a me questionando. Pergunto: será que a identidade mulher ainda me cabe? Será que ainda devo me considerar uma mulher? Será que a identidade mulher trans ainda é uma realidade? Ou será que a identidade dissidente de gênero seria mais apropriada? Porque se a gente pensar melhor sobre a transexualidade, entende que ela ainda está presa no binário homem-mulher e a palavra mulher, a categoria mulher, não foi feita pensando pra gente, para pessoas trans. Se a gente ainda cabe nessa categoria. Eu não diria abandoná-la, como as travestis fazem. Muito sabiamente e se colocando muito mas à frente nessa discussão. Mas eu encerei essa reflexão em torno do que lugar a gente deve se encaixar. Não é sobre feminilidade, não é sobre ser feminina, ter cabelo longo, curto, não. Isso é outra discussão. É sobre o lugar de mulher e como ele é colocado na sociedade. Inclusive as próprias mulheres cis estão questionando isso como aconteceu nas duas últimas ondas do feminismo que estão questionando justamente esse entendimento.

A própria Judith Butler critica a categoria de mulher e como ela é discutida na filosofia. Então, a gente também faz isso numa posição transfeminista. Mas não é isso qe represento na prática artística em que bordo com o tom de rosa. Aqui ainda é esse lugar da libertação. A identificação pós transição onde desejo o sapato alto, a maquiagem. Então uso o rosa porque ele é definido como a cor das mulheres.

Nesse ponto mergulho fortemente no têxtil e no entendimeto dos tecid os e nas cores dos tecidos. Por xemplo: o branco como uma tela vazia, ou seja, quando nascemos. Logo em seguida, devido ao sexo biologico, azul entra em cena. Aqui não [mostra o outro]. A gente já entra na cor rosa, que é a cor da mulher, né? Então eu vou agora colocando o “Ela/Dela e o trans, mas eu não uso mais o ponto corrente. Bodo com um ppnto aberto

Eu não sei o nome desse ponto, mas ele tem espaços. Como aqui [ela mostra o bordado], por onde você consegue sair, você foge do interior. São as trans fugindo d gênro compulsório. Diferente daqui do ponto corrente, que é fechado né? [mostra o bordado com ponto corrente]. Então é outro ponto. Eu decidi manter o preto para destacar os dizeres, Mas esse, esse entorno, ele também não vai ser fechado. Eu ainda não tracei, mas a minha ideia é circular e deixar espaços pra a pessoa trans poder sair.

Além dessas, penso numa terceira que virá com uma cor neutra: um marrom ou um bege claro. Nela, as palavras vão estar soltas, porque a performatividade não estará mais presa. Não terá mais ela/ nem dela. Talvez interrogações nesse terceiro momento do libertado, entre aspas. Então, hoje a minha prática têxtil está assim.Ela tem toda essa discussão que eu falei para vocês até agora. Está inteiramente relacionada com o gênero e com a forma como esse corpo foi se construindo. Pouco a pouco vu colocando essas memórias. Elas foram sendo colocadas nas práticas artísticas pensando nas experências e usando os dispositivos de acesso. Elas foram sendo integradas a minha prática através das técnicas têxteis, usando a materialidade, as cores da materialidade, as texturas e as técnicas. Para tal, eu penso nos pontos que eu uso para representar cada experiência. Estou praticando dessa forma.

sou uma pessoa que estudou muito e gosto de estudar Artes Visuais

Eu estava numa situação muito confortável como Cabeleireira. Existem pessoas que ganham muita grana com cabelo e trabalhando exclusivamente com cabelos. Trabalhando com a classes mais ricas e aguentando, o que é um saco. Eu já trabalhei com o público de classe rica e média alta e sei que você é vista como uma empregada da pessoa. Enfim, mas eu estava num lugar bem confortável e eu poderia ter continuado, mas eu queria mais. Eu, como sempre, sou uma pessoa que estudou muito e gosto de estudar. Eu sentia vontade de voltar, mas eu não tinha coragem de estudar. Zé Carlos, meu marido, que me incentivou a voltar. A veio a graduação, né? E qual a graduação? Por que vem artes? Por causa de um bofe, eu começo a frequentar os lugares de arte da cidade, tipo casa do Cachorro Preto, Edifício Pernambuco, na época. Inclusive, toda essa história está lá na minha dissertação, porém eu troquei todos os nomes. A Luciana [Borre], minha orientadora, disse assim: “você troca o nome desse povo”. Então, os nomes que stão lá são todos fictícios. Voltando a história da cena noturna pernambucana, foi por conta de uma “criatura” que eu comecei a frequentar os lugares. Tentanva sempre achá-lo. Funcionava assim: ele vinha atrás de mim, ficava uma semana enfiada dentro da minha casa e depois sumia por meses.

Por isso eu fui tentar achar essa criatura e passei a frequentar os lugares. Essa foi uma história, mas exisem várias. Eu só eu poderia dizer assim: “o cinema pernambucano, a música pernambucana, a dança pernambucana e as artes visuais pernambucanas passaram pela minha casa, ta gente?

Só homens! Se há uma coisa que eu tenho muito clara, é que eu sou heterossexual demais. Eu admiro muitas as mulheres, mas no lugar de amizade e de ter possibilidade. Tudo isso porque foi o cabelo das mulheres que me sustentou e a grande porcentagem de clientes foram as mulheres. Eu costumava dizer e posso ainda dizer que as mulheres me bancam. São elas que me bancam. Eu sou bancada por mulheres no meu trabalho, claro.

Mas voltando a história, eu comecei a frequentar esses lugares de arte e fui me apaixonando pelas linguagens. A primeira que chegou foi a performance, porque eu conheci uma pessoa que me convidou para fazer o modelo vivo, que a Vi Brasil. Foi no antigo C.A.S.A que ela tinha com o Murilo Freire e Rafa Matos. Foi no C.A.S.A, com o Murilo, que eu perfomei, pela primeira vez como modelo vivo, e me apaixonei. Comecei a performar e me encantar com aquilo e entender que eu poderia estudar Artes. Mas eu tinha medo e eu sabia que não dava para fazer a graduação na Universidade Federal, porque não tinha como estudar no horário do curso. O horário de lá é uma loucura. Quanto ao particular, eu achava que nunca ia conseguir pagar. Achava que eu era muito caro ou eu tinha medo de um mês ruim de dinheiro. Mas aí Zé Carlos me incentivou. Ele achou a faculdade e eu fiz o curso a distância. A graduação. Foi ótimo. Eu adorei. Fiz várias palestras e produzi alguma coisa. Depois saí e fui direto para a especialização. Fiz especialização em metodologia do ensino de artes e também à distância. Quando terminei, eu vislumbrei a possibilidade de mestrado, pensando agora na Universidade Federal, porque já estava casada com Zé Carlos. Na época, o apoio dele e o apoio das clientes já me dava essa possibilidade de tirar pelo menos uma manhã ou uma tarde, durante um ano pra poder estudar.

Então agora é verdade, eu estou na Universidade Federal, eu estou fazendo um mestrado em artes visuais

Ao longo dos estudos surgiu uma questão: eu tinha toda essa prática na arte cinética e tinha a militância trans feminista muito separadas. Logo, eu me perguntei: “como é que eu posso juntar isso?” Dessa inquietação surgiu o meu projeto: “eu posso juntar a minha prática em arte cinética com a discussão sobre gênero para representar um corpo trans e as mudanças feitas no corpo trans? “. Essa era a pergunta. Eu fiz o projeto, fiz a seleção, estudei bastante e li muito caisa. Entre elas a artografia, o livro do Belidson e da Rita Irwin e tive contato com todo o conhecimento teórico que só a Universidade Federal pode dar, porque nos cursos a distância, a discussão sobre gênero é uma tangente bem longe.

Acabei passando na seleção. Foi bem difícil, pois de 24 [vagas] eu fui a 22.ª da turma, mas entrei e foi uma experiência louca, porque a Universidade Federal era um lugar que eu sempre imaginava impossível de estar e eu achava o campus lindo. Eu adoro aquele Campus, só não adoro mais do que o da Rural [UFRPE], que é muito fofinho. Com esse sentimeto, digo que o início do mestrado foi um momento muito especial na minha vida, sabe? Eu fiquei muito emocionada. E não só isso, o proceso eletivo também foi bem, foi e é, por partes, né? Você passa na prova. Depois o seu projeto é lido e aí ele é aprovado. Aí depois veio a etapa de currículo. Então, eu ia passando em tudo e no final eu fiquei nas vagas. Foi incrível e quando eu me vi entrando lá no Campus como studante, eu disse: ” agora é verdade, eu estou na Universidade Federal, eu estou fazendo um mestrado em artes visuais”. Foi muito massa, velho. Mas aí veio a pandemia! Foi bem louco, mas mesmo assim, a Luciana [Borre], junto com as outras professoras e a turma, foi uma guerreira. A gente enlouquecia brigando com aquele Google Meet e Google Classrooms. Mas fi forma como a gente conseguiu fazer a disciplina. Durante o curso e as orientações, a minha pergunta mudou, porque a Luciana dizia assim: “olha, do jeito que está, a tua resposta é sim ou não, e isso não dá uma pesquisa. Então, você tem que perguntar ‘como’ e não ‘se'”. Após a mudança ficou assim: “como eu posso juntar o meu trabalho com arte cinética e militância trans feminista para poder representar os corpos de mulheres trans? Feito isso, segui em frente e digo com toda certeza que o mestrado foi lindo. No final a dissertação saiu com 400 páginas, tive dez trabalhos publicados, fiz dois estágios de docência e um monte de palestra. Ah, foi lindo! Agora que eu terminei eu não sei mais o que fazer. Acho que dar entrevista, né? [ri]

agora a gente tem uma voz com amplitude suficiente para ser ouvida

No começo da pesquisa, eu abro o primeiro capítulo dizendo que durante muito tempo a gente foi procurada, como fala a Meg.  A Meg Rayara diz que durante muito tempo a gente foi objeto de pesquisa e que a novidade é a gente ser pesquisadora. A novidade é a travesti pesquisadora. Porque ser objeto de pesquisa. Isso foi uma coisa que aconteceu durante muito tempo. E aí eu abro falando isso, que eu fui entrevistada, que outras pessoas entrevistaram e que há uma importância enorme nessas pesquisas. Não é isso que eu estou falando. A intenção da crítica não é inferiorizar, jamais. É importantíssimo, principalmente o trabalho de Berenice Bento lá na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mas agora a gente tem a voz com amplitude suficiente para ser ouvida.

Foi com esse reconhecimeto que a gente começou a ser convidada. O Leandro Colling, quando vai falar sobre ativismo das dissidências sexuais de gênero, cita algumas emergências que foram surgindo pra que as pessoas dissidentes começassem a ter essa voz amplificada. Segundo ele temos o aumento das discussões nas universidades e as redes sociais. Você tem a própria situação de violência que insiste em não diminuir. Apesar da gente falar sobre o tema e combater as violências. Também temos os governos conservadores que começam a pressionar para que sejamos invisibilizadas. Então, todas essas ferramentas foram fazendo com que a gente deixasse de ser apenas “objeto de pesquisa” e passasse a ter uma voz mais ativa na discussão. Tudo começa com esses convites para palestras, onde você vai ali falar junto com outras mulheres, porque a gente sabe que as nossas lutas se interseccionam. Inclusive, muitas pessoas falam que grande parte do preconceito e da precariedade a qual as mulheres trans e as travestis são submetidas, surge devido ao abandono desse lugar de superior que elas tem dentro do gênero compulsório, porque o homem  está nesse lugar de superioridade numa sociedade machista e heterocentrada. Quando alguém designada homem ao nascer abandona esse lugar, estaria descendo na hierarquia de poder.

Surge a pergunta: por que você, que nasceu homem, quer ser mulher? Então, se é assim a gente é tratada. Isso porque associam a mulher a uma posição inferior. Por essa questão entre outras, sabemos que existe intersecção nas lutas feministas e transfeministas. Quem percebe essa interseccão, nos chama para falar junto com as mulheres cis e dessa forma a gente vai galgando espaços. Percebe-se, nessas falas, a importância e a diferença da potência das narrativas quando elas são feitas por pessoas que vivem o que está sendo dicutido na pele.

Não que, por exemplo, o que o Chico [Ludermir] diz aqui no livro a História incompleta de Brenda, a partir das entrevistas com as mulheres trans, tenha menos importância. Tem muita! Eu cito-o durante toda a minha pesquisa, mas o que Chico fala aqui tem um peso. São pesos diferentes, quando ele fala sobre mim e quando eu mesma falo, entendem? É a questão que a Djamila [Ribeiro] aborda quando ela trata do lugar de fala, lá no livro que ela dá esse nome.

Vai ser um caminho sem volta

Então todos esses detalhes vão sendo percebidos, alterados e as discussões vão aumentando. A gente vai ganhando força, o trans feminismo vai se fortalecendo e a gente vai ocupando outros lugares. Inicialmente timidamente, tateando até onde a gente pode ir nessas palestras, mas depois a gente começa a ganhar espaço na mídia e até papéis em novela. A gente vai crescendo e as redes sociais vão dando espaço. Os canais do YouTube. Artisticamente a gente vai sendo reconhecida e ocupando os espaços. O Prêmio Pipa é um exemplo no campo das artes, pois indicou Castiel Vitorino e Ventura Profana na última edição [em 2021]. Aura que é daqui de Recife também fi indicada. E na edição anterior, Castiel e Ventura foram premiadas. Então a gente começa a ganhar esse espaço e a entrada pras universidades, que isso é pra mim, como pesquisadora, um espaço maravilhoso. Assim como é o da política, porque a política e a universidade, juntas, elas vão criando e oportunando essa mudança muito mais significativa. Eu acho que foi essa conjunção de fatores que foram criando os espaços pra que a gente pudesse ocupar todo, né?

E aí eu fico imaginando e sonhando, pois eu tenho certeza que a gente vai ter a primeira deputada federal trans. Com esse crescimento e visibilidade, temos várias meninas com com muita chance. Entre elas a Erika Hilton, a Erika Malunguinho e a Ariadna estão se candidatando. Com certeza vamos eleger uma delas. Vai ser um caminho sem volta. Vai ser difícil pra as meninas na Câmara, vai. Como a gente vê a Erika Maluquinho lá em São Paulo. Ela, em vez de estar usando a voz dela para aumentar o combate à precariedade e para seguir adiante, ela toda vez tem que ficar voltando para dizer “olhem, eu existo!”. Quer dizer, ela não consegue porque a todo tempo precisa se defender. Ela não avança, porque tem que ficar, se defendendo e isso é horrível. Mas mesmo assim elas estão lá e só isso, sabe? Somos um ato político por si só. Como se diz: a gente pode até estar no meio da rua, parada e calada e isso já é político. Será político o fato de estarmos só ali, existindo na rua ao meio dia. Porque durante muito tempo o lugar da mulher da travesti era a rua de noite, maquiadíssima para entrar dentro de um carro e trabalhar com sexo. Só era isso. A gente estar dentro de uma universidade, estudando e sendo docentes ou dentro de uma Câmara Municipal ou estadual? Isso é uma coisa muito potente, muito política, muito importante e é um caminho sem volta. Só vai se potencializar e vai ter entrave, porque os setores conservadores estão no último suspiro. É uma coisa que o Zé Carlos destaca: são os últimos suspiros do setor conservador. Não tem mais lugar no mundo para o conservadorismo que eles defendem. Não tem. Então, nos últimos suspiros, eles são mais violentos. Eles são mais radicais porque eles sabem que não dá. Mas então a gente vai enfrentar isso. E será uma luta por futuro. Por um futuro digno e um amanhã muito melhor para todas as pessoas trans.

eu sou muito feliz de saber que hoje eu sou também uma mulher que tece

Eu acho que é importantíssimo eu estar aqui nesse dia, falando sobre a minha pesquisa. Na verdade me sinto muito, muito feliz de saber que Mulheres que Tecem é um projeto totalmente pensado e executado por mulheres. Ao me entrevistar ele tem uma mulher trans junto. Nesse instante ele está dizendo que o projeto entende a importância dessa pluralidade, do que é ser mulher, porque muitos outros não fazem isso.

A minha presença é uma prova de que vocês entendem essa importância. Isso é entender que as mulheres cis e as mulheres trans podem lutar juntas. Existe o transfeminismo e existe o feminismo, mas essas correntes podem lutar juntas. Fazendo isso elas vão ganhar muito mais força e vão mostrar que existem mulheres trans fazendo têxtil e discutindo gênero. Discutindo memória dentro do têxtil, usando técnicas de bordado ou não, ora transgredindo tudo isso pensando só na cor ou pensando na materialidade, mas produzindo principalmente muito além da prática têxtil. Produzindo artes visuais, comunicando visualmente e usando a memória, usando a arte para comunicar. Eu acho que é essa a importância desse projeto e me sinto muito feliz de saber que hoje eu também estou sendo vista como uma mulher que tece.

felicidade e libertação

[O trabalho pra você] Olha, é um prazer, é trabalho em si. Eu penso em grana, mas também em felicidade e libertação. Eu estou nesse lugar dos adjetivos. É força, é garra, é coragem e é, principalmente, potência, sabe? Como eu acabei de falar: a linguagem visual é muito importante pra mim. Durante muito tempo a gente não pôde falar, ou não tivemos nossas vozes ouvidas. Hoje a gente fala verbalmente e visualmente. Então, para mim é essa a potência do meu trabalho na arte.

Para mim, ser mulher; não sei, acabei de… [ri]. O que é ser uma mulher? É uma grande interrogação, mas é uma interrogação que tem ao lado dela muita felicidade. Eu gosto de ser e hoje me maqueio quando quero, boto salto quando quero. Depois de muito tempo, finalmente tenho um tênis, que era uma coisa que eu não tinha [vibra]. Tenho o tênis de corrida e social. Tu imagina o que uma pessoa ter 50 pares de sapatos e não tem um tênis? Isso aconteceu porque achava que o tênis não era algo de uma mulher como eu, porque o tamanho do pé dentro dele ficava grande. Então, hoje ser mulher, a mulher que eu entendo ser hoje, é muita força. É preciso ser forte para ser uma mulher como vocês e uma mulher como eu e como todas essas outras maravilhosas que nos cercam.