Carla tem 15 anos. Sabe fazer tudo da renda renascença, menos a malha, segundo ela. Aprendeu com a mãe, Alexandra, que estava ao lado dela enquanto conversamos em sua casa.
Por Luiza Maretto
Caminhando pela cidade, buscando, com indicações variadas: nome do bairro na cabeça, perguntamos na rua…vira, sobe, volta e avistamos uma casa, entre outras, cheia de mulheres: irmãs, primas, meninas e mulheres. Olha, ali, todas fazem renda! Mulheres trabalhando sustentando a casa. A renda alimenta. Muitas idades, muitas histórias.
Ela tem pouca idade, já colheu em plantação, ajuda em casa, e faz renascença todas as manhãs. Estuda na escola à tarde. Gosta de matemática e tem sonhos, um deles é ser professora. Quer ensinar o que aprende: cada idade, tem muita vida pra trocar. Planta que vai crescendo com o compromisso de ajudar a cuidar do jardim.
Na sala estão a mãe, os irmãos mais novos e nós, escutando. De uma mulher para outra, de menina para mulher… Entre histórias vividas e (re)lembradas, a chuva molha as roupas enquanto conversamos. A mãe vai recolher. A água molha suave, e também pode encharcar. Assim, um pequeno cão aparece para acarinhar a todos que estão ali!
Sua almofada de fazer renda tem capa de proteção, feita por ela mesma. Da manga da camisa tira a linha e desmancha muitos novelos, vai nos ensinando os aprendizados que teve até aquele dia, e fala sobre outros que ainda virão. Realidades, sonhos, dores e belezas. Passado, presente, futuro. A história da avó, da mãe, da filha…as brincadeiras mudam, os livros são trazidos pra casa, e o trabalho? A filha ensina a mãe, a mãe ensina a filha, uma pela outra. Todo o dia fazendo renda, a renda fazendo o dia. Até quando?
História de uma, história de muitas. Cada renda, muita vida. Cada vida, muita renascença. Contar e reconhecer os diferentes pontos importa. E registrar: alguém pergunta, alguém fala, alguém escuta…todas compartilhamos. Escutar vida que existe importa, histórias mais que necessárias pra molhar a terra seca e (re)nascer flor. Todo dia.
Assim, na sala da casa delas, naquele encontro, cada uma de nós compartilha a idade que tem. Jovens senhoras meninas mulheres, brasileiras.
Para nos despedir, o cãozinho vem brincando emaranhado em nossos pés, com carinho.
Menina, tu ensinas a fazer renda e também a resistir! O teu fazer tem valor. Tu sabes! Mas é bom que outros saibam também.
Narrativa
Eu, muito pequenininha, ia colher também
Depois que eu nasci eu já mudei tanto de casa que perdi até as conta. Eu fui pra Petrolina. Passei sete anos morando lá.
Assim, que logo após que minha mãe teve a menina mais nova, Carol, a gente foi embora pra Petrolina. Aí, com sete anos depois, a gente foi voltou pra cá. Porque lá (em Petrolina) era melhor de trabalho. (Gostava mais) Da plantação. Que eu, muito pequenininha, ia colher também.
Eu não quero (voltar) nem a pau. Minha família… Que eu tenho lá só mora três tia, só. Por parte de pai, mesmo assim. Aí não adianta nada eu ir pra lá pra ficar pela casa dos outros. É melhor ficar aqui (em Poção). É, a convivência por aqui. Com a família, amigos.
Eu mais gosto mesmo é matemática
A escola? É ótima. Tem o Mais Educação, né? que, se quiser, estuda o dia todo. Só que eu não estudo, não. Vou só à tarde mesmo. Eu não gosto de ir de manhã, não. É porque, assim, se eu for de manhã, não tem como ajudar em nada em casa. Aí é melhor ficar em casa. E vai lá só pra brincar. Tem aula de dança, futsal. Só que eu não sou muito chegada, não. Aí é melhor ficar em casa.
A (disciplina/ matéria) que eu mais gosto mesmo é matemática. Prefiro mais a matemática. Tem gente que pensa que é por causa do professor, mas, não, é por causa da aprendizagem mesmo. Porque, sempre quando chega na terceira unidade, eu já tô com minha média fechada em matemática. Agora, nas outras…
(Gosta de ler?) Muito. Livros, contos, um monte de coisas. Uma das que eu gostei mais foi uma que eu peguei de… “A vida de Alice no subterrâneo”, que é ela no coisa… É Alice? É Alice. A história? Ela entra numa toca, né?, aí já muda tudo da vida dela. Só sei resumir algumas partes, só. É, só que o nome do livro é “Alice no mundo subterrâneo”.
Quando eu acordo, eu vou escovar os dentes. Logo depois eu tomo café e aí já começo a fazer renascença. Eu passo a manhã todinha fazendo renascença. Quando chega meio-dia, meio-dia e quinze, eu me arrumo todinha pra ir pra escola. Aí, quando é uma hora e quinze, eu chego lá. Aí eu coiso… Lá eu passo o coisa. Ando, dou umas voltinha. Quando eu chego, troco de roupa; às vezes faço renascença, às vezes não. Às vezes, eu vou pra casa da minha vó, lá em cima. Não sou muito chegada em ficar em casa direto, não.
Com mãe. Ela que me ensinou
Eu aprendi (renascença) assim que eu cheguei aqui. Tinha nove anos. Com mãe. Ela que me ensinou. É “dois amarrado”. A primeira coisa que eu aprendi. E “sianinha de laço”.
(A mãe aprendeu) Com a mãe dela.
Porque é bom fazer (renascença). A pessoa não fica… é uma economia de tempo. Aí só assim economizo tempo, ao invés de ficar andando por aí que nem eu costumo ficar. Assim, pra mim, de manhã, passa mais rápido. Agora, à tarde, não. À tarde eu acho que o tempo demora mais do que de manhã. Aí é meio ruim também, porque de manhã o tempo passa rápido.
Ponto, eu sou mais “abacaxi”. Aí tem a “aranha tecida” também. Tem a “sianinha”. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer, que eu faço mais. Eu faço mais só.
Eu só passo… Pra mim, tem sempre, que eu não passo nem três dias sem coisar. Aí não fico, não, sem renascença, não. Eu não consigo ficar parada, não.
Assim, pra mim eu não tenho besteira, não. Eu faço tudo. Toda a parte do renascença.
Eu só não sei uma coisa, só. A “malha”. Porque o resto eu já sei tudo, já. Que eu tenho a “sianinha”, tem o “pauzinho”, só não sei a “malha”.
A MÃE, ALEXANDRA:
Porque não tem outro tipo de trabalho pra elas. Aí ensinei pra num, não ficar dependendo dos outros toda vida, né? Aí tem que ensinar a elas. Eu o que eu sei fazer, né? Não sei fazer outra coisa. Nunca tive estudo. Aí, pronto. Eu aprendi com a minha mãe. Eu tinha nove anos de idade quando ela começou a me ensinar.
Mesma idade que eu aprendi.
Minha mãe me ensinou, que era pra comprar roupa e calçado. E pra comprar o material da escola. Mas eu ia pra escola e voltava do caminho. Me escondia e ia tomar banho no riacho. Aí, pronto.
Assim, que meu sonho desde criança é ser professora
Agora eu pego no pé dela pra ela (a mãe) ter estudo, que faz falta um estudo.
Assim, que meu sonho desde criança é ser professora. Não sei por quê. Aí a única coisa que eu tenho vontade de trabalhar é só com ser professora. Assim, (de) matemática, que é a matéria que eu mais gosto.
Normalmente, sei lá, é porque eu quero passar o que eu aprendi pra outras pessoas que não saibam ainda. Minha ideia é isso. E também porque, assim, todo, sempre no começo do ano os professores perguntam: “qual a profissão que você quer ter?”. Eu sempre digo: “professora”. Até meus amigos mesmo que já estudam comigo há muito tempo fica, assim, perguntam por que que eu quero ser professora. Aí eu digo: “sei não, porque eu quero ensinar o que eu aprendi às outras pessoas”. Aí eles dizem: “tu tá é doida de ser professora”.
(A renascença) Eu ensinei à minha irmã algumas… à minha tia também, que ela não sabia a “sianinha”. Aí eu ensinei. Foi… é, legal. Deu muita risada porque ela errou, mas ela aprendeu num instante. Eu fiz, comecei, aí depois ela fez, aí aprendeu. Ela olhou pelo que eu fiz.
Porque, se não tiver paciência, demora mais ainda pra aprender. Porque tem, assim, quando tão me incomodando eu fico sem paciência. Aí começo logo a gritar.
Eu que ensinou ela (a mãe) assinar foi eu. Aí, de hoje em dia ela tem que trocar os documento, porque, quando ela tirou, ela não assinava. Aí, como eu ensinei a ela, ela tem que trocar todos os documento. Porque ela não sabia. Aí, assim que eu aprendi, eu escrevia e botava ela pra reescrever um monte de vezes. Aí ela foi aprendendo. Aos meninos pequenos também, quem ensina é eu. Demorou um bocado de tempo pra ela aprender.
A MÃE, ALEXANDRA:
Dá tristeza, né?, porque uma criança ensinando uma buchuda véia. Eu com trinta e quatro anos. Ela com quinze. Ensinar eu, né? Aí eu falei: “tá bom”, pelo menos o nome. É o estudo que eu não tenho que quero dar a ela. Quero que eles estude pra ser alguém na vida, porque só viver de renascença direto é doído. Pelo menos um emprego melhor, né? Fica na renascença não arruma um emprego. Tiver mais velha. Se ela não casar logo, for-se embora, não deixar eu. Mas até agora tá dentro de casa, graças a Deus.
Não tá muito bom pra renda
Porque já a gente tá nesse ano, assim, só que não tá muito bom pra renda, esse ano. Aí não tá muito bom, não. Eu acho que pode acabar.Se acabar, a gente vai passar fome. Que o bolsa-família é pouco e já ajuda, né?, a renda.
Geralmente, aqui na cidade os trabalho tem que ter primeiro ano completo, segundo, tem que ter o ensino médio todo completo. Aí não tem muito, assim, pra quem não estudou, quem é analfabeto. Tem, é… frentista, que fica na loja, tem vendedor. Na prefeitura, mesmo, tem alguns trabalho que tem que ter estudo.
E eu mesmo
(
relação com o pai) É boa. Às vezes, eu brigo com ele. É só os de casa mesmo. Que os de fora só faz conta quando precisa de alguma coisa. Só minha mãe e meus irmão. Somente. Que os outros…
(é feliz?) Bastante. É, um pouco (cuidadora). (Ser mulher?) Tem a vida mais vivida, né?, porque em algumas coisa, a gente, e eu mesmo, em algumas coisa, age como mulher. Em outras, não.
Clara: E o que é que tu tem de menina ainda?
CARLA: Pouca coisa.
Luiza: O quê?
CARLA: Só… nem sei como dizer.
Luiza: Mulher tem essas coisas, né? de trabalhar pra viver, né?
Clara: Qual a idade da tua mãe, Carla?
CARLA: Trinta e quatro.
Clara: Tu acha que ela teve tempo de ser menina?
CARLA: Acho que não.
Luiza: E tu?
CARLA: Eu tive algum. Só um pouco, né?
Luiza: que é que tu faz, tu brinca?
CARLA: Não.
Luiza: Nem com esse negocinho aqui?
CARLA: O Cachorro? Às vezes.
Luiza: O quê que você acha que é ser artesã?
CARLA: Assim pra mim, eu acho que é… Sei nem como dizer.
Luiza: Quê que é o artesanato?
CARLA: É o trabalho, né?, saber da cultura também. Aprender.
Clara: Por que que tu acha que é importante a gente fazer essas entrevistas?
CARLA: Pra ficar mais conhecida, não é?, a cultura do artesanato. Só isso mesmo.
Clara: E tu acha que tu faz parte disso?
CARLA: Eu acho que faço.