Dona Lúcia é uma das fundadoras da Associação de Mulheres Artesãs de Passira. Aprendeu ainda criança a bordar com a mãe e ensinou para suas filhas. Foi professora primária, mas em sua vida toda nunca deixou de carregar o seu bordado pra todo canto.
Antes mesmo de irmos a Passira em 2019, já havíamos entrado em contato com a AMAP para pedir uma carta de anuência. Em 2016, elas nos deram permissão para conhecer, através da Associação, a realidade das mulheres bordadeiras de Passira. Não sabíamos nós que, chegando lá, seríamos recebidas com muito carinho anos depois. Dona Lúcia é daquelas pessoas que você senta pra ouvir. Aprende a cada palavra que ela fala. Sua voz é baixinha, mas a altivez está em tudo que ela diz. Seu trabalho já levou-a pra outro país, e já ensinou em muitas cidades do Brasil. Foi professora primária e continua sendo professora de tudo na Associação que ela ajudou a construir, e que segue de pé porque ela tá lá, todo dia, corrigindo, bordando, resistindo. “Eu me sinto como uma mulher com vinte anos”, ela diz. E nós sabemos que a mente rápida carrega muito mais que qualquer garota de vinte anos aguentaria. Apesar de termos conversado com ela num dia quente na Associação, dona Lúcia foi um oceano.
Narrativa
A MINHA INFÂNCIA FOI ÓTIMA
Nasci em Passira. Com parteira. D. Martinha. Quando eu era criança eu passei só 12 meses morando fora, em São Lourenço da Mata. [Tenho] irmãos. Foram 13 homens e 4 mulheres.
A minha infância foi ótima, eu digo, assim, ótima porque a gente estudava, aí quando eu tava em casa ajudava, assim, minha vó nas atividades de casa e bordava.
EU CRESCI VENDO ELA BORDANDO, QUANDO ELA FALECEU O BORDADO TAVA PERTO DELA
[Aprendeu a bordar com a sua mãe?] Foi. [E ela aprendeu com quem?] Ela aprendeu com uma senhora que morava aqui na Passira, e ela [a mãe] foi trabalhar como babá na casa da mulher e em troca, pra mulher ensinar ela a bordar, ela não pagava. Ela [a patroa] ensinou ela e a irmã dela, a minha tia. Era uma senhora, ela teve loja aqui de tecido, já faleceu faz muitos anos. A gente perguntou à mãe como ela tinha aprendido, porque a minha avó não bordava, só era agricultora, aí ela disse que a mãe colocou ela [no trabalho de babá] pra ela aprender a bordar.
Minha tia também bordava muita coisa, não borda mais porque tá com Alzheimer.
Porque quando minha mãe aprendeu, minha mãe era criança de 10-12 anos, aí ainda não bordava muita gente, não. Aí, a partir da adolescência, foi que minha mãe começou a bordar muito. Ela, minha tia, elas bordavam muito, aí todo mundo começou um aprendendo com a outra.
Eu cresci vendo ela bordando, aí a gente bordava, estudava e, quando a gente não estudava, ficava com ela de instante em instante bordando. Na época, ela gostava de toalhas bem grandes, aí ela ficava do lado e eu do outro. Fazendo o bordado.
Aí desde, assim, 9-10 anos que eu bordava junto com ela. Depois ela foi trabalhar como auxiliar em escola. Trabalhava um horário e às tardes e às noites o bordado era perto dela. Quando ela faleceu, o bordado tava perto dela.
[Ela faleceu há] 17 anos, ela morreu jovem.
NA HORA DO INTERVALO EU ESTAVA BORDANDO
Quando eu fui estudar o segundo grau, eu fui estudar na cidade vizinha, porque aqui [em Passira] não tinha. Mas o bordado ia na bolsa, e isso foi bom. Todo mundo na escola me conhecia. Porque na hora do intervalo eu estava bordando. Porque precisava pagar o colégio, precisava pagar o transporte, aí meu pai não tinha condições. Ele disse logo: “se você estudar, você vai; agora, eu não tenho condições”.
Porque aqui na época não tinha o segundo grau e eu queria ser professora. Aí [na escola] eu bordava direto. Era intervalo, se eu tivesse um horário vago ficava esperando carro, porque eu tinha o compromisso. Minha mãe pagava o colégio, mas tinha a passagem, aí eu tinha que trabalhar e eu não trabalhava em canto nenhum. Só bordava.
PROFESSORA PRIMÁRIA
Eu só passei a trabalhar quando terminei magistério, aí eu fui trabalhar [como professora] primária, mas eu não parei de bordar. Todo mundo dizia: “Meu Deus, tu é doente!” porque, pra onde eu ia quando eu era mais jovem, eu bordava.
Eu Trabalhei 32 anos [como professora]. Aí, quando eu me aposentei, alguém me chamou pra escola particular, mas eu disse: “eu não quero nem saber”.
DEPOIS QUE EU CASEI, EU AINDA BORDAVA MUITO
Sempre bordando, [bordei] os enxovais das minhas filhas, ave Maria! quando eu ficava grávida, eu tinha que fazer que eu não confiava. Fazia eu e minha mãe, que eu não confiava em outras pessoas fizesse.
A gente bordava pra outras pessoas. A gente pegava aquelas toalhas gigantescas, fazia margarida, papoula. A gente fazia uma papoula que levava uma peça de linha! Nessa época a gente bordava no bastidor, eu e minha mãe.
Eu casei em 1976, aí, depois que eu casei, eu ainda bordava muito. De noite, às vezes eu ia até 1-2h [da madrugada] bordando. No casamento, eu fiz meu enxoval todinho, os filhos, quando eu ia ter, fazia tudinho. [Tive] Três filhos, só engravidei três vezes mesmo.
Eu tenho sete netos e uma bisneta. Minha bisneta era minha modelo, Heloísa.
Eu moro com meu esposo, somente. Que meus filhos são casados. Aí só mora nós dois.
ISSO É TODO DIA
Eu de manhã levanto cedo, 5h-5h10, no máximo, aí, quando eu levanto, eu já vou de imediato: ponho o almoço e o café no fogo. Aí, varro casa, lavo roupa, o quintal, quando dá 7h tomo um banho e venho pra cá [pra Associação. Passo o dia aqui, até 17h.
Quando eu chego em casa, tomo banho, faço a janta. Quando eu não estou com sono, vou olhar algumas mensagens… Tem dias que eu não consigo ver. Aí, quando eu não vou fazer isso, eu ainda vou fazer um bordadinho e depois vou dormir. Aí vou dormir cedo. 9h-9h30 no máximo eu tô dormindo.
Aí isso é todo dia, quando chega no sábado eu vou lavar roupa, botar as coisas em ordem, que o marido tenha tirado das gavetas durante a semana. No sábado, às vezes, eu venho praqui [pra Associação] de tarde. No domingo eu faço o almoço, aí eu não aguento, ou eu saio ou vou bordar, não tem jeito. Aí na segunda começa de novo.
CORRIGINDO AS COISAS
[Na Associação] eu ensino, eu corto, eu brigo com as meninas também [ri], eu costuro, eu olho o que tiver errado; agora, foto e essas coisas eu não faço não. Nem atendo muito o telefone. Mas passo o dia todo nessa resenha, olhando, corrigindo as coisas.
A HISTÓRIA DA ASSOCIAÇÃO
Ah, a história da Associação: eu estou desde o início, porque antes a gente bordava, mas era muito difícil… você vê agora no começo como é que… imagine há uns anos atrás… A gente fazia o bordado e quando chegava lá, a mulher “não gostei”, e às vezes dizia “ah, não vou pagar hoje não, vou pagar não sei que dia”, essas coisas todinha era muito chata.
Agora mais não, mas eu gostava muito de fazer discutir o que tava errado, aí eu ficava discutindo com as pessoas quando entregava o bordado.
Tinha outra menina que é Marilene, aí ela se juntou comigo e todas duas era igual: a gente sempre que ia entregar na casa da mulher a gente discutia. Aí, a gente foi e foi se juntando.
De duas, três, era um grupo de sete, aí depois a gente começou a sair, fui pra Recife. Aí [a gente] quebrou cabeça… “por que não formamos um grupo? formar um grupo vai ser melhor pra gente, a situação da gente vai melhorar”.
Aí a gente começou com vinte, só que, você sabe, trabalhar em grupo é muito difícil. Quer dizer, ainda somos amigas desse grupo que a gente começou, todo mundo. Agora, só que uma aprendeu a costurar, e costura em casa. A gente já ensinou a roupinha: já trabalha em casa. A outra foi trabalhar em mercado, outra é professora também. Cada pessoa saiu conseguindo alguma coisa, mas elas ainda agradece ao grupo porque foi quem deu força pra elas.
[Começou com] Vani, Marilene, eu, Marcília, Giselia, Cristina, Leô. Em 2007. Já era AMAP, foi o primeiro nome que a gente escolheu. Aí a gente ficou, umas saíram e Vani ainda está. Ela não vem muito aqui, mas ainda vem. Aí a gente ficou até hoje. Aí ficou entrando gente, saindo gente, sabe como é esse negócio de grupo?… muda, fica. Hoje a gente tem inscrita 40 [pessoas].
Teve uma cooperativa que foi feita em numa gestão de Edelson [prefeito de Passira à época], mas foi, assim, coisa de prefeitura, aí, enquanto o prefeito estava, o negócio ia fluindo, depois que o prefeito saiu as pessoas não ligaram, aí destruíram material, acabaram com tudo…
Aí, quando a gente foi formar a Associação, muita gente dizia “nem se inscreva que não vai dar certo”; outras dizia “quantos anos vai passar?” Eram várias histórias, só que a gente nem ligava.
"EU VOU COMPRAR UMA MÁQUINA DE BORDAR, PORQUE EU NÃO QUERO NEM OLHAR NA CARA DE UMA BORDADEIRA"
As pessoas ficaram com uma certa raiva [por conta da criação da Associação]. Ainda hoje eu ainda acho que tem gente que não gosta. Porque a gente faz campanha contra eles [os lojistas]. No tempo que eu era mais nova, tava com bastante saúde, eu chegava a discutir mesmo sério, sabe?
Toda vez que ia [o lojista] pra uma reunião xingava, porque tava pagando caro, outros diziam: “eu vou comprar uma máquina de bordar, porque eu não quero nem olhar na cara de uma bordadeira”. Aí eu sempre ficava discutindo com as pessoas.
Todas [da associação] bordavam pra eles, mas nenhuma borda mais.
Eles dão tecido e dão linha — e manda as pessoas fazer. Aí as pessoas fazem, e entrega de volta pra eles, somente. Isso eles não dão um obrigado, não diz assim “minha gente, olha, esse ano a gente lucrou muito, a gente agradece a vocês”. Não falam nada não; ao contrário, xingam.
Olhe, eu nem entro muito nas lojas. Só entro mais na loja que eu compro tecido, que são duas, três. Nas outras lojas quando eu entro, mas se eu vejo uma pessoa [bordadeira] lá eu digo: “oxe, tai feito doida, é? borda não, menina!”
"EU VOU AJUDAR VOCÊS, VOCÊS QUEREM?"
Chegou Julia [Ana Julia Melo, pesquisadora e designer], ela tava estudando pra fazer o TCC, né? Aí ficou com a gente muito tempo. Ela vinha, passava dois dias, uma semana. Ela era de Fortaleza, mas vivia em São Paulo. Aí, quando ela chegou, a gente tava mesmo nessa angústia. Tinha terminado o Projeto de Ronaldo [Fraga]; ninguém aparecia mais.
Aí ela veio e ficou olhando muito tempo, aí ela disse: “eu vou ajudar vocês, vocês querem?” Aí a gente: “quer, no que você puder ajudar”. Aí Julia veio, sem projeto de governo nenhum, ela fez um projeto coletivo, as pessoas que contribuíram, e ela fez o site [Bordados de Passira] e ela pensou em atingir [R$] 30.000,00, um valor bem pequeno. Nada do Governo, foi voluntário mesmo. Ela trouxe os colegas delas de São Paulo. Veio João, veio Edu, veio Adão, veio ela. Aí foi que as meninas do grupo dela, a Bia, passou uns fins de semana com a gente. Ah, essa aí ajudou demais, porque foi quando a gente começou a aprender modelagem, que a gente não tinha noção.
Eles novamente viram a questão de mudar desenho. Eles deram associativismo. Trouxeram colegas que ensinou a mexer nos programas de computação, fez o site. Esse movimento todinho foi esse grupo de jovens que fez. Essas pessoas ajudaram demais a gente.
Ela conseguiu fornecedor de cotton, o contato da Círculo [empresa de linhas], que, quando a gente compra, vem com um preço melhor. Isso tudo quem conseguiu foi ela.
Ainda hoje a gente somos parceiros. Agora pouco quando a gente foi pra São Paulo, ano passado, juntou o grupo todinho pra receber a gente, foi super legal.
Em fevereiro [2019]. A gente foi dar uma oficina. Fui eu, Nete, Elisangela. Foi no Sesc Belenzinho, a gente passou uma semana.
VOCÊ SÓ NAQUELE SALÁRIO PEQUENO, VOCÊ NÃO POSSUI NADA
Eu tinha o trabalho de professora, mas eu digo a você: o salário de professora, você só naquele salário pequeno, você não possui nada. Mas eu deixei minhas filhas bem, hoje em dia minhas filhas são empregadas. Hoje em dia, assim, minha filha mais velha ficou muitos anos aqui [Na Associação] comigo, aprendeu aqui também, na época que entrou a aprender a costurar ela se integrou junto com a gente, aprendeu. Aí, depois ela saiu daqui, saiu Maria, saiu Socorro, saiu várias aqui que viviam no grupo, que, na época que a gente aprendeu um pouquinho a costurar, elas foram aprendendo também, aí foram formar um grupo com Marcília [filha mais velha] de costura.
Aí hoje minha filha sobrevive disso, ela não é empregada, mas graças a Deus ela conseguiu a casa dela, ela paga o estudo dos filhos dela.
A GENTE AJUDA
Porque quando as pessoas procuram a gente, aí a gente já sabe que aquela pessoa tá precisando de ajuda, né? Aí a gente ajuda. Como essas meninas mesmo [aponta pra duas moças que estavam na Associação durante a nossa conversa], vieram de outra cidade, precisando de ajuda querendo fazer: “como é que faz?” aí, não custa nada, a gente orienta.
Foi feito Nete, quando eu conheci Nete, aí eu vi a situação dela, eu digo “Meu Deus do Céu como a gente faz?” pra ajudar Nete, ela com as filhas, o marido foi embora com aquela situação bem difícil, aí eu convidei pra bordar. Aí eu disse “ô, Nete, se junta aqui com a gente?” Aí ela aceitou ajuda e já faz tempo que ela tá com a gente e eu acho ela uma pessoa maravilhosa, uma pessoa que nunca deu trabalho, é um pessoa mesmo 100%, eu acho.
Ela é legal, ela vai pra feira, vai pra todo canto e não dá trabalho. Né bom a gente trabalhar com pessoas que é bem compreensiva.
ÀS VEZES AS PESSOAS NEM SABE QUE A GENTE FAZ
A sociedade local não [valoriza]. A local, às vezes as pessoas nem sabe que a gente faz. Quando a gente expõe na feira é que muita gente: “oxente, vocês vendem isso? aonde vocês vendem?”, aí a gente diz, não porque a gente saiu da cidade [do centro], a gente tá lá em cima bem sossegado.
Mas quando a gente vai pra fora, claro. Na Feneart mesmo a gente, benza-te Deus, a gente vende vestido, minha filha, à beça. Vende mesmo. A gente não vende agora nesse período de janeiro, mas dezembro aqui você nem chegasse aqui que a gente não lhe atendia. Porque tem as pessoas que compram pra revender, que a gente vende em Fortaleza, Maceió, na Paraíba, no Rio, São Paulo, BH mesmo, em Sergipe, tem uns clientes que a gente entrega em Santa Cruz do Capibaribe (PE). Toritama, tem grupo que vem da Bahia.
ONDE TINHA SOMBRA, ERA O POVO SENTADO BORDANDO
Quando eu tinha mais ou menos 20-25 anos, Passira quase 100% bordava. Olhe, era adulto, criança, adolescente, todo mundo bordava, até maridos que ajudavam as mulheres, filhos que teciam crivo, muita gente mesmo. Olhe, bordava mesmo com força, que você passava essas ruas todinhas por ali, todo canto você passasse, você via. Nunca se botou uma escola de bordado aqui, incrível. Sempre aprendia um com outro. Mãe com a filha, a filha com a mãe, isso entre famílias e entre amigos.
Elisângela mesmo aprendeu a bordar escondido da mãe, eu tinha outras meninas no grupo que também aprenderam a bordar escondido da mãe. Todo mundo bordava. Aí depois apareceram esses programas do Governo, ótimos de um lado e péssimo do outro, e foi crescendo a geração dos preguiçosos. Uns: “ah, eu não vou bordar não, vou receber minha bolsa família”, aí outros: “ah, não tô com minha vista doendo”. Mas antes você chegava aqui… tinha tarde que nas calçada, onde tinha sombra, era o povo sentado bordando.
NA FEIRA VENDIA MUITO
Tinha a feira de bordado, na feira vendia muito, vendia que eu digo a você que nessa época eu bordava mesmo, eu via a prateleira do povo tudo vazia. Aí outra, teve um governo desse senhor chamado Edelson, que ele foi um prefeito inteligente nessa área, e ele encontrou compradores fora, aí vendia.
Eu não trabalhei pra cooperativa não, que eu era jovem e não trabalhei, mas outras pessoas trabalharam e eles escoava esse material pra fora. Porque antes também, Clara, veja só, antes ninguém ia em Recife, ninguém ia em canto nenhum, só vivia na cidade. Aí a gente trabalhava pra seu fulano, seu fulano era quem levava. Tinha um grupo de dez pessoas no máximo, que eram as pessoas que pegavam a produção da gente e vendia lá fora.
Muita gente daqui comprou sua casa boa, ou foram embora, muita gente daqui foram pra fora do país, muita gente daqui que ganhou dinheiro foi embora. Aí, por isso, que ficou as pessoas menos esclarecidas. Compraram seus apartamentos não sei pra onde, formaram seus filhos e foram embora. Na época todo mundo bordava. E era, olhe, agora paga esse valor você imagine quando a gente era jovem, era um nada!
EU CRESCI E NÃO CONHECI UMA ESCOLA DE BORDADO AQUI
De ensinar [bordado], eu cresci e não conheci uma escola de bordado aqui. Morou uma senhora que às vezes eu ia na casa dela a mando da minha mãe levar algum bordado. Era uma senhora chamada Dona Iraci, ela nessa época já era idosa. Minha mãe bordava enxoval de bebê, e dizia: “Vá entregar a dona Iraci”, aí a gente ia entregar lá a essa senhora os bordados.
Ela [Dona Iraci] também bordava. Quando eu chegava lá ela tava bordando, aí ela era uma pessoa feito eu, quem chegava lá perguntado: “ô, Dona Iraci, eu quero aprender”, aí ela dizia: “sente aí”, aí ela ensinava, entendeu? Ela era filha de Passira, mas só que ela passou um bom tempo estudando em colégio de freiras, que eu não sei se ela queria ser freira…. eu não sei porque eu não conheci marido dela não, só conhecia ela… Ela ficou um bom tempo no colégio das freiras, aí ela sabia bordar divinamente, aí ela não ensinava mesmo pagando, nadinha. Ela ensinava, assim, quando uma pessoa chegava, que pedia, ela ensinava como fazia e a pessoa ia embora, aí dali uma pessoa da casa ensinava os outros. Um ficava perto olhando, e por aí ia embora.
ERA COM UMA AGULHA BEM FININHA, ERA BEM LENTO
Antes eu lembro que, quando criança, minha mãe bordava um bordado muito cheio daquelas pimenta, cheia das rosas, bem cheio. Depois a gente começou a fazer rosas, margarida, papoula, entendeu? Aí depois começou diversificando: as rosas maiores. Aí hoje muita gente só sabe bordar essa floral grande, o floral pequeno eram as pessoas mais antigas que bordavam, poucas atuais sabem bordar aquelas florzinhas pequenininhas.
Era muito bonitinho, era com uma agulha bem fininha, era bem lento, que ficava uma perfeição. Minha mãe mesmo tinha um enxoval que ela batizou a metade dos filhos. Era um timão bem grande, cheio dos bordadinhos, cada coisa linda, belíssima.
Aí depois vieram as pessoas que iam em Recife, eu não sei quem, eu sei que, eu lembro, eu já bordava pra dona Carmelita, era uma senhora baixinha, eu lembro até hoje, eu não esqueço aquele acabamento; assim, eu nunca gostei muito de fazer aí eu fiz um dia, aí ela: “ah, ficou lindo faça mais!”, eu: “eu não quero fazer isso!”, aí ela dizia: “faça, faça”. Eu chegava com uma dor: “ela mandou isso de novo, vou deixar de fazer”; eu ficava aborrecida e ela ficava insistindo e eu não gostava, eu gostava mais de bordar flores, folhas e essas coisas. Quando eu chegava lá, ela já dizia: “um seu e um da sua mãe”, já tava dobrado lá… que eram umas peças sempre grandes.
Ela levava pra Recife; eu não sei pra quem ela vendia. E ela dizia a gente? A gente timidamente chegava na sala da mulher e ela já tava lá com a peça dobrada: “tome!”, a gente só pegava e ia pra casa trabalhar, simplesmente. Ninguém questionava…
E, tinha uma coisa, quando terminava, a gente passava ferro, dobrava bem dobradinho e ia levar.
EU PUXEI TODO MUNDO PRA DENTRO DE CASA PRA TRABALHAR
Aí teve um período mesmo que eu tinha minhas filhas adolescente, aí eu coloquei na minha vida, antes de ir pra associação, aí eu disse “essas meninas já tão grande, o que a gente vai fazer?”; só eu praticamente trabalhava, que meu esposo era agricultor.
Aí a gente começou a fazer, eu puxei todo mundo pra dentro de casa pra trabalhar. Aí uma cortava, uma desenhava, uma ajudava a embalar, outra passava ferro, a outra bordava, e só sei que a gente passou uns anos assim nesse conjunto, trabalhando. Aí meu marido… eu pensei: e você? o que eu vou fazer com você? “você vai engomar!, que você tem força”, aí a gente ficou… Marcília não aprendeu a costurar, mas essa daí [falando de Marielia; desde criança sabia. Aí ela fazia sapatinho de bebê que era lindo os sapatinhos dela! belíssimo! hoje ela não faz mais não. Aí ela, com 13-14 anos, ia pra escola e, quando chegava, eu dizia: “filha, vai lá, te manda”.
Aí a gente passou um bom tempo, isso aí deu, elas estudaram, a gente antes não tinha uma casa própria, pagava aluguel, aí atualmente não paga aluguel. Cada um dos meus filhos, cada qual tem sua casa própria, todo mundo. Isso não foi do emprego [de professora] não. O emprego era somente pro sustento. O restante que a gente conseguiu até hoje foi por conta do artesanato mesmo. Que a gente ficou trabalhando.
MULHER É BOMBRIL
Eu disse assim outro dia que “mulher é bombril”, que ela tem que ser tudo: ela tem que ser mãe, tem que ser avó, tem que ser psicóloga, tem que ser doutora, ela tem que ser economista, ela tem que ser tudo! quando ela falha em um ponto, a sociedade já vem em cima. Ela faz tudo: 99%; se ela não fizer o 100%, aí a sociedade vem derrubar tudo que ela fez, né? É muito difícil ser mulher.
Quando nasce uma criança e dizem: “é menino!”, eu digo: “graças a Deus”, aí o povo: “oxente, mãe!”, aí eu digo: “graças a Deus que não é mulher, porque teu marido pode sair e chegar de manhã porque é um homem, agora sai tu”, né?, “sai tu pra tu ver o que acontece, principalmente em cidade pequena”. Numa cidade grande às vezes nem sabe, tem muito lugar pra ir. Eu, na minha cabeça, não acho nada demais, eu considero os direitos iguais pra mim e ele, mas só que só no papel; na realidade não é.
Agora, por outro lado, a mulher eu acho que é o ser mais importante, porque se não for a mulher o homem não vive. E se não vive a sociedade, não vive, né? Que as mulheres que fazem tudo. Tira uma mulher de uma ambiente de trabalho pra tu ver como é que fica. Tira a mulher da casa pra tu ver como fica.
Agora que é difícil é. Mas é gratificante, que a gente que produz nossos queridos filhos, né? que é tudo pra gente: os filhos da gente.
EU ME SINTO MUITO FELIZ DE SER ARTESÃ
Eu me sinto muito feliz de ser artesã. Isso aí eu tenho orgulho, porque eu já me realizei muito, já passeei, já conheci muita gente bacana. De vez em quando eu faço uma viagem, uma maravilha. Mais feliz ainda que no cantinho que você chega você é valorizada. Se você vai fazer uma oficina é uma gostosura, se você vai só fazer uma exposição, do mesmo jeito. Eu fico super feliz, gosto demais.
Já fui no ano de 2002-2003 eu fui pra Cuba representar o Estado. Foi eu e um técnico comigo, na época eles queriam um artesão e um técnico. Aí a gente foi… tinham seis países lá junto, foi muito legal, fiquei 15 dias lá. O Ceará e Pernambuco que foi do Brasil, foi Maria de Lúcia de Fortaleza e o técnico lá… eu tô esquecendo, é a idade. Na época que eu fui eu não tava na Associação não. Foi na época que eu estava trabalhando com minha família em casa.