L. faz o desenho contado e também sabe encher os tapetes. Faz isso com outras companheiras que enchem. Trabalha com isso há muitos anos, aprendeu criança. É sócia integrante da Associação de Tapeceiras de Lagoa do Carro, local onde escolhe conversar.
Por Luiza Maretto
Com risadas, histórias e reflexões sobre a vida, na porta de entrada da Associação de Tapeceiras de Lagoa do Carro – a ASTALC, desde o primeiro encontro, ela abre para nos conhecer. Neste dia, ela está desmanchando uma parte de um tapete que já havia sido feito, desenhado por ela, enchido por outra. L. quer mudar, quer de outro jeito e, por isso, desmancha, tudo virado pelo avesso. Seu avesso, todo “transpassado”. Acompanhada da parceira de confiança que enche, fazem e refazem esse tapete. L. mostra a belezura do ponto da outra, enquanto desmancha o seu que, segundo ela, não está tão bem feito assim.
Ficamos sabendo que muitas gravações já foram feitas na Associação: entrevistas de televisão, reportagens sobre a tapeçaria, sobre o recente roubo do grupo, e por aí vai. E o nosso encontro, o nosso jeito de fazer, o que muda? Com as mulheres sentadas em roda, falamos dos nossos objetivos, nosso percurso, os termos, nossa visão e o que era pesquisa pra gente, pelo menos até esse momento.
L. diz que confia e marcamos outro encontro, pra outro dia, no local escolhido por ela. E ali mesmo, na Associação, (con)fia contando sua história, sua frente, seu avesso, mostrando os diversos lados da sua vida. Fiando juntas, arriscando o encontro. A gente aprende com ela que, se depois algo der errado, é só virar do avesso, desmanchar, encher de novo.
Assim, o roteiro de perguntas se modifica também, pela confiança de L.: tivemos de responder nossas próprias questões! Ela nos escuta, quer saber de nós. Escutamos a outra, escutamos a nós mesmas. Escutamos a nós mesmas, escutamos as outras. Vida de mulheres, nossas vidas, linhas transpassadas, abertas, refeitas. Cuidado, risco, movimento, confiança.
Arrematamos aquele dia de encontros, com os acabamentos finais: registramos a troca com fotografias, risos e mãos nos tapetes, dela e da parceira que enche, juntas.
Narrativa
O pessoal que morava no sítio foi vindo pra rua
Eu nasci e me criei lá no Engenho Cordeiro (Carpina), aí com oito anos eu vim pra rua (Lagoa do Carro – Centro). Fez quarenta e quatro anos que eu moro aqui em Lagoa do Carro. Na época eu gostava, eu achava bom no sítio também. Naquela época eu lembro que minha mãe mandava eu limpar feijão, ela já mandava a gente apanhar pimentão, plantar batata, macaxeira, a gente era pequena mas já ajudava meu pai, né? que eles eram agricultores e ela já mandava. Aí quando a gente veio pra rua foi assim uma coisa diferente, né? Porque lá era um sítio, uma casa distante da outra. Aí, quando veio praqui pra rua eu com oito anos de idade, aí não sabia de muita coisa, né?
O pessoal que morava no sítio foi vindo pra rua, ninguém ficou mais lá. Aí era a cidade mais próxima era aqui, meus pais conhecia, aí gente ficou aqui até hoje.Aí a gente enfrentou muita dificuldade na vida, né? muita dificuldade. A casa, minha mãe com sete filhos, a gente morava em dois cômodos, sabe? até hoje ainda existe, essa vilinha de casa lá… não tinha condição de pagar mais alto, né? o aluguel, aí a gente morava nessa casinha.
Naquele tempo o pessoal sabia o que era fome e hoje não sabe mais
Minha mãe como tinha muita necessidade por conta da daquele tempo, eu digo que naquele tempo o pessoal sabia o que era fome e hoje não sabe mais .E, aí a gente veio e quando a gente chegou aqui na rua não ficou parada não. Minha mãe foi panhar luca, ela panhava uma luca que tem, cês não conhecem… era uma luca que ela apanhava e vendia pra fazer colchão, naquela época muita gente usava colchão, deixaram agora, né? Porque tava aparecendo muito aquelas doenças por causa do colchão tudo bichinho se acumulava no colchão.
Depois ela continuou sendo agricultora, adubando cana, cortando cana mais meu pai. Aí minha mãe apanhava luca depois ela começou, é… foi lavar roupa de ganho, final de semana. Tinha o… na época chamava matadouro, o negócio de matar boi, porco, cabra, aí, minha mãe já lavava aqueles fato, que hoje chama miúdo, né? não sei como é que vocês conhecem, mas na época chamava miúdo. Então ali junto ela já levava a gente, entendeu? Dali vai a gente passava a tarde com ela, durante a semana ela levava a gente… naquela época criança trabalhava, dava tudo pra gente, né?
Ela fazia um cestinho de verdura, de batata, disso e daquilo e mandava a gente vender nas portas do povo. A gente: “Olhe, compre isso!”, né? e depois eu fui botar água de ganho, que em Lagoa do Carro na época não tinha… tô contando minha história, né?
Fui fazendo essa ponte
Na época não tinha água encanada aqui em Lagoa do Carro, há quarenta anos atrás. Aí o que é que fazia? Tinham muitas mulheres que tinha criança e não tinha tempo de ir pegar água porque era distante, aí nisso eu já fui fazendo essa ponte: “Olha, se vocês quiser eu boto água pra vocês!”
Aí, sei que com isso, eu abastecia quatro casas carregando água na lata na cabeça, aquelas latas de… hoje é lata de tinta, né? lata de tinta de pintar casa, querosene na época, porque tudo hoje tá mudado. Então era uma lata de eu acho de vinte quilos, vinte litros.
Era, eu acho que… eu não sei avaliar quilômetros, mas eu… eu não sei dizer a vocês a distância, eu sei que era distante. Eu levava acho que uma meia hora ída e volta com essa lata d´água e isso eu abastecia quatro casas vizinha lá, entendeu? de pessoas que tinha condições, né?
Elas me pagavam pra eu carregar água então tinha aquele horário… Quando o sol tava frio de manhãzinha e de tardezinha, e quando não era esse horário eu já ia fazer tapete, eu já comecei aprendendo a fazer tapete, entendeu?
Fazendo tapete, fazendo tapete
Nove/ dez anos de idade, eu já comecei a aprender a fazer tapete. Daí então não parei mais. Depois eu fui fiz um tempo, aprendi desenhar com Mauzé, com Teresinha, aí fiz um tempo, depois, fui trabalhar em casa de família, depois voltei…
Aí era um tempo assim… um tempo eu fazia tapete, um tempo eu trabalhava, e vice-versa, né? Aí depois eu trabalhei, minha arrumação de casa mesmo, tudinho eu fiz com dinheiro do tapete, eu criava porco também, sabe? lá no quintal tinha porco, eu criava e fazia tapete, era o dia todinho e de noite, eu, minha mãe e minhas irmãs. Minha mãe também fez muito tapete, viu? Minha mãe enchia pra Mauzé de Zito, e pra Teresinha também.
Depois apareceu um pessoal que começaram a invadir uma vilinha de casa ali onde a gente mora hoje, aí, nesse pedacinho a gente começou fazendo tapete, fazendo tapete. Minha mãe ia dormir duas, três horas da manhã fazendo tapete, mas ela fazia tanto do tapete, menina. Durante o dia ela saía, ia cortar cana, adubar cana mais meu pai, e de noite ela pegava, menina. O galo cantava e a gente fazendo tapete, inda hoje ela lembra… ela, né… não tá fazendo mais porque ela tá com 84 ou é 85 anos, mas ela fazia tanto tanto tanto, comprava telha, madeira toda casinha dela, trabalhou/ fez muito tapete minha mãe, muuuito. E… eu continuei fazendo. Eu parei, eu acho que eu passei somente uns cinco anos sem fazer tapete.
Eu era muito ativa, eu era muito ativa
Eu ia pra escola, mas a gente ia só mais por causa da comida. Aí, eu estudava assim , eu estudei, eu fiz até… até a oitava série, eu era muito ativa, eu era muito ativa.
Aí pegava à tarde e à noite, aí minha mãe já era com a gente, entendeu? Minha mãe já era: “Vamo fazer, vamo fazer! tem que fazer isso!” aí foi assim… minha infância foi muito boa eu agradeço muito a Deus porque foi uma infância assim que eu não fui fazer coisa errada, né? não fui… né?
Não estudei muito porque na época há uns trinta anos atrás, né? os estudos era tudo pago. Aqui não tinha, aqui só tinha até a quarta série, aí tinha que ir estudar em Carpina. Mal a gente tinha pra comer e vestir, como é que a gente ia pagar transporte e pagar escola em Carpina que é a cidade aqui próxima, né?
Aí depois quando eu fui ficando assim já com quinze quatorze anos, aí foi que fizeram já os camelos, aí eu comecei a estudar e fiz a oitava série, mas eu nunca parei de fazer tapete. Mesmo eu estudando, mas eu chegava em casa sempre ia fazer o tapete, entendeu?
Eu parava assim, às vezes o dinheiro não dava, né? aí, chegava uma pessoa: Bora trabalhar comigo? Bora cuidar do meu filho? aí eu ia. Aí, eu ficava em Recife um tempo, um ano, dois anos, aí voltava, começava a fazer tapete novamente, entendeu?
Porque a associação é assim
Quando eu casei eu fiz um pra minha casa, um tapete de… se eu não me engano foi um metro e meio por dois, pra minha casa e depois quando os meninos começaram a andar, não tinha como eu usar mais, aí eu resolvi vender. Ele era um tapete bonito e eu ainda tenho uma foto dele em casa. E, uma colega minha que fazia tapete também veio um pessoal de fora comprar uns tapete, e esse homem queria um tapete preto, pronto, e ela sabia que eu tinha esse tapete e ela foi lá em casa e disse:”L., tem um rapaz que quer um tapete com enchimento preto e a gente não tem. Tu me vende esse?” que eu nunca que ia vender esse tapete que eu fiz pra mim, né? Aí ela: tu me vende e depois tu faz outro. Aí, devido eu tá precisando eu vendi.
Eu vim praqui com três tapetes. Aí comecei fazendo, comecei fazendo e até hoje… vinte e cinco anos de história que eu tenho aqui. quase vinte e cinco anos..
Porque a associação é assim, todas as sócias daqui a gente dá escala., tem o dia de escala, né? tem o dia de escala da gente.. então, no dia de escala é Deus que determina as bençãos, né? Porque aí eu tinha meus dias de escala e quando eu tava aqui sempre chegava cliente.
Eu tinha dinheiro pra fazer um tapete, quando eu vendia aquele tapete aquele dinheiro que eu vendia o tapete eu pegava o meu lucro e mais o dinheiro que eu investia naquele tapete e fazia dois. Entendeu? Eu nunca, eu não me preocupava em gastar em comprar nada, sabe? eu dizia eu tenho que investir, eu tenho que investir pro futuro eu tenho que investir e assim Deus foi me abençoando que eu tinha uma boa clientela.
Eu vendia mais aqui na associação, porque eu gosto de trabalhar com peças grandes, eu gostava de trabalhar com peças de seis metros, o meu forte era tapete de seis metros, entendeu? eu trabalhava mesmo, fazia. Nunca levei calote na minha vida, nunca levei calote. Vinte e cinco anos de associação nunca levei calote.
Ó, eu sempre gosto eu digo pra meus filhos né: “Eu não pego nada de ninguém, não gosto dado de ninguém, o que é meu é meu o dos outros é dos outros”. Agora se, meu trabalho eu tenho que ganhar, né? No meu trabalho eu tenho o que ganhar. Eu não vou trabalhar pra não ganhar meu dinheiro.
Até que as pessoas me provem o contrário, eu confio
Não sei… não sei, até que as pessoas me provem o contrário eu confio, entendeu? então… até que você me prove o contrário que você vai me trair, entendeu? eu sou muito assim de confiar em Deus, e achar que as pessoas todas elas são honestas até que me provem o contrário.
Eu tenho uma vida assim até com meus filhos, eu confio. Eu digo a eles, eu confio. Agora quando eles me provam o contrário aí eu saio de mim, aí eu tento resolver, da maneira que é pra ser, eu digo: passe confiança.
Então eu tinha essa confiança com as pessoas, com todo mundo, eu sempre trabalhei com confiança, sempre, com as meninas aqui, com tudo, sempre trabalhei. E, quando chegava um cliente dependendo do que eles conversava comigo, sabe? eu já tava confiando meu coração já dizia: “manda, faz”. Pronto. E, graças a Deus sempre fui.. Deus me abençoa tanto que hoje não tô mais assim naquela ativa, que eu tava, que eu trabalhei muito, eu fiz minha casa, entendeu?
No início eu já desenhava
No início eu já desenhava, como eu disse a você, aprendi a desenhar com Mauzé e com Baia, e eu desenhava, e depois eu já passei pra dar pra elas desenhar porque eu não vencia a demanda de peças era grande e eu não vencia desenhar todos.
Alguns a gente cria, alguns, não todos, entendeu? sempre a gente tem um desenho aí que a gente sempra aumenta alguma coisa, diminui, entendeu? a gente não quer desse jeito quer de outro, aí a gente vai tentando, sabe? Se a gente acha que essa rosa noutro colorido, de outra maneira vai ficar bonito aí você… o jogo é que faz é você. Eu acho que eu gosto mais de trabalhar com tapete floral, tapete de cacho jogado assim.
Hoje eu gosto mais do enchimento geral, porque o desenho ele puxa pra mente e eu to muito, to com uns problemas de… acho que as preocupações me deixou um pouco esquecida, aí eu erro muito… agora se eu sentar e riscar, tô dizendo a você que em um mês eu fiz cem pesos. Porque eu sentava e riscava tudo, riscava a tela toda. Você olhava assim tava tudo riscadinho, era só você por cima assim fazendo, ó. Aí, hoje eu prefiro enchimento.
Eu não parei, porque eu ainda tô aqui, né?
Há quatro anos que eu não faço mais, que eu viajo, mas eu trabalhava, antes do meu filho adoecer. Hoje eu sinto falta porque eu fiz minha casa, mas não consegui terminar, não tem cerâmica o banheiro, não tem nada, entendeu?
É quatro anos, filha, indo pra SP e voltando, indo pra Recife, passei um ano em Recife. Então minha vida foi assim sabe, muita luta. Eu não parei, né? porque eu ainda tô aqui, né? Eu parei porque eu fui forçada porque eu passei o ano de 2014 no hospital em Recife com meu filho, 2015 eu passei em São Paulo, 2016 eu fui três vezes pra SP, 2017 eu já fui duas vezes, e já ta previsto a data pra ir em início de setembro.
Eu amo fazer tapete. Foi minha vida todinha fazendo tapete, mas vou voltar a fazer, eu tava dizendo as meninas: vou voltar a fazer porque agora na feira mesmo não vendi quase nada porque eu quatro anos sem fazer, né? são peças de antigamente. O que eu fiz foi cem pesinhos, mas mesmo assim eu não tava em condições de comprar um stand com as meninas.
Eu sou feliz, eu gosto de andar rindo
Ah, eu acho que eu sou realizada na vida, não tenho muito sonho muito alto não, sabe?
Eu tenho muita pessoa que gosta de mim. Muita gente que eu sinto que gosta de mim de graça. sem eu né… gosto de brincar de rir, porque o ruim é você chegar junto de uma pessoa negativa, tá com problema e ta chorando “ah porque hoje eu to assim”, ela tem tudo e não agradece, ta sempre insatisfeita, né… Então eu agradeço, eu sou feliz, eu gosto de andar rindo. E vou pro sítio mais meu irmão e meu cunhado eu rio o dia todinho.
Então o tapete na minha vida foi muito bom, muito mesmo, eu desde a minha infância que o tapete foi bom pra im, eu nunca fui pra outro trabalho. Mas, é muito bom fazer tapete, é muito bom é uma terapia, sabia? Tem gente que tem problema de psicólogo, isso e aquilo, faz tapete, uma terapia.
Eu já tive um bocado de barreira, já. Já suportei muito. Eu falei o lado bom, né? O lado ruim a gente esquece, apaga, porque o lado ruim tornou-se bom, você acredita? O lado que era ruim na minha vida hoje tornou-se o lado bom, né? Já tive alguns problema e teve gente que passou pior, né? Mas eu agradeço a Deus porque a vida é maravilhosa, é maravilhosa. Se fosse pra começar eu começaria tudo do mesmo jeito, entendeu? Porque valeu a pena. Vale a pena.
A vida é difícil de mulher
Eu acho que a vida é difícil de mulher, a vida é difícil de mulher, não sei se é porque eu sofri na vida. Eu nem sofri, mas eu digo que sofri mais pra ser mulher, é bom ser mulher, mas eu acho que mulher suporta muita barra pesada na vida, num é? Ser mulher mesmo, é difícil, gente. Mas que ser mulher, só o fato da gente ser o dom da gente ter filhos, da gente engravidar, amamentar, educar.
Então ser mulher é muito importante na vida, ser mulher é maravilhoso. Agora você tem que lutar muito, né? Lutar muito, ter muita fé em Deus, porque as barreiras que a gente enfrenta…
Pra gente ser feliz a gente não precisa ter palácio, um carro zero, basta você ter saúde, primeiramente ter Deus no coração, porque tendo Deus. Deus transforma tudo.