“pra onde eu quiser ir eu vou.”
Nosso primeiro encontro com Maria da Paz, ou ‘Da Paz’, foi na Feira do Bordado, algumas semanas antes da nossa imersão em Passira. O que primeiramente nos chamou a atenção foi o seu stand, que era muito convidativo, todo ornado em bege e vermelho. Depois, outra coisa chamativa era observar aquela mulher de sorriso largo e cheia de energia, com seu jeito alegre e, ao mesmo tempo, forte.
Nosso segundo encontro foi ainda mais especial, graças ao caminho entre a cidade de Passira e o sítio Vajada, por plantações, ruínas e uma vegetação que também nos convidava a pausas e registros. Até nos atrasamos um pouco por isso, mas fomos da mesma maneira recebidas com um sorriso aberto em sua casa, pelas suas amigas, companheiras de bordado, pelos pássaros, galinhas, bodes, roçado e pelo farto aconchego.
Ela nos contou que ficou viúva aos 20 anos e, nessa época, se deitava na rede com o filho de sete meses e bordava. Foi a primeira vez que meus olhos se encheram d’água. Depois nos contou da alegria de ver a lavoura ‘voando’ , tudo verdinho, quando dá jerimum, fava e milho. Essa foi a segunda vez que marejou meus olhos.
Depois de muita conversa, de todo carinho que recebemos, de toda admiração que senti por aquela mulher que afirma ir pra onde quiser, meus olhos se encheram novamente de água, desta vez por ter que me despedir dela ao fim da entrevista.
Narrativa
Eu nasci em Vajada mesmo, que eu nasci em casa. [São] cinco filhos, dois homens e três mulher, sou a primeira.
Aprendi a bordar com a vizinha. [Com] 11 anos. Minhas irmãs sabem bordar, todas duas sabe bordar. Elas não são muito de continuar bordando, elas sabe bordar mas não vevi bordando como eu.
Eu estudei até a terceira série solteira, quando eu vivia em casa com pai. Aí aos 18 anos eu me casei.
Tive um [filho] do primeiro casamento e eu tenho mais três filhos do segundo casamento, tudo homem. [Tenho] 2 netos, um casal.
A GENTE IA PRO ROÇADO
Porque a gente ia pro roçado, aí pai dava um pedaço de roçado, uma parte, e a gente tinha que trabalhar com a enxada, aí quando era meio-dia eu tinha que ir pra escola, aí eu saia de meio-dia do roçado, tinha que trabalhar bem muito pra poder chegar e tirar aquele pedaço de mato que pai deu.
Aí quando eu chegava em casa eu só fazia almoçar, tomava um banho e corria pra escola. Aí quando eu chegava da escola, a gente ainda tinha que fazer todo serviço: a gente tinha que tirar lenha, moer milho, botar água.
A gente plantava milho, feijão, a gente, nesse tempo, a gente plantava também algodão. Agora não plantam mais não porque tem um bicho que come algodão. Plantava muito algodão, no tempo que as pessoa ganhavam mais dinheiro, né? que plantava muito algodão. A gente vendia. Em limoeiro tinha uma usina que comprava. A gente trabalhava na terra dos fazendeiro e vendia os algodão a ele e ele vendia pra usina, só que a gente ganhava menos que o fazendeiro. Depois fechou.
O BORDADO ELE ME DÁ INDEPENDÊNCIA DESDE OS 11 ANOS.
Aí nos intervalos a gente, naquele tempo, era candeeiro. Aí eu comecei a bordar com a vizinha e aprendi, em uma semana eu aprendi, aí nos intervalos quando chegava em casa na hora do almoço e à noite no candeeiro eu fazia o bordado.
O bordado ele me dá independência desde os 11 anos. Pai só dava uma roupa a nós, aí pai dava roupa de festa e de São João, aí eu comprava mais uma roupa com meu dinheiro do bordado.
Aí eu sempre assim fiz as duas coisas, ia pro roçado, mas, quando chegava em casa, nas horas vagas fazia o bordado. Sábados e domingos que a gente não ia pro roçado a gente bordava. Aí eu conquistei minha independência a partir disso.
EU PASSEI SÓ UMA TARDE E UM DIA NA CASA DELA PRA APRENDER
Eu fiz um lençol de vira ele era inté verde. [primeira peça que fez] Ele tinhas umas florzinhas coloridas, aí eu fiz e mostrei à mulher e ela disse que tava bom, mas quando eu peguei esse bordado eu assumi o risco de, se eu botasse a perder, eu teria que pagar esse bordado.
Eu já aprendi, já recebendo. Eu passei só uma tarde e um dia na casa dela pra aprender. Aí quando foi no fim de semana ela foi e trouxe o bordado pra mim e disse assim “se você botar a perder você paga”. Eu acho que ela disse brincando, mas eu disse “tá certo, eu vou fazer bem feitinho”; aí eu fiz. Não foi muito bem feito, mas ela pagou.
EU FIQUEI VIÚVA COM 20 ANOS
Aí eu fiquei fazendo… quando eu me casei eu fazia, aí já tinha mais tempo que eu ia menos pro roçado. É porque, quando eu tinha meus menino, no intervalo eu ficava tomando conta de menino, e nesse tempo fazia. Eu me deitava na rede com ele e bordando. Aí depois eu fiquei viúva com 20 anos, e meu menino tinha 7 meses.
Quando eu fiquei viúva, eu fiquei com menos tempo pra bordar. Mas assim mesmo eu passei um ano na casa da minha sogra, aí minha sogra tomava conta dele [do filho] e eu tinha mais tempo pra bordar.
Eu bordava, toda semana eu fazia uma toalha de banquete; naquele tempo era uma toalha de banquete. Eu fazia uma toalha de banquete, e ganhava meu dinheiro. Não era minha não, essas toalhas de banquete eu pegava em Passira, que tinha pessoas que entregava o bordado já riscado, dava linha pra gente bordar, a gente numa semana bordava e no fim de semana ia, levava, e elas pagava.
EU SEMPRE FUI REVOLTADA COM O VALOR QUE ERA PAGO
Só que eu me revoltava, eu sempre fui revoltada com o valor que era pago. Porque hoje em dia é menos de três reais uma toalhinha pra bordar. A gente bordava, mas eu achava muito pouco. Eu dizia: “Meu Deus a gente borda o dia todinho pra ganhar um real”. Aí eu disse assim “eu vou bordar pra mim”. Eu já sabia bordar e eu já sabia os tamanhos da toalhinha, das passadeira. Aí eu media com fita métrica e via o tamanho certo. Aí comecei comprar os tecido, e muitas linha eu já tinha que sobrava dos bordado das mulher, elas não pediam de volta não.
EU COMECEI A PARTICIPAR DE FEIRA
Aí eu comecei a participar de feira, feira do pró-rural, naquele tempo era do pró-rural, aí passei muito tempo participando. O pró-rural tinha um espaço na FENEARTE e passei muito tempo participando. Que quem era da zona rural, as agricultora, tinha mais direito de participar. E também participava pessoas da rua.
PASSIRA TEM MUITO CONCORRENTE, AÍ NÓS TEM QUE TER INOVAÇÃO
Passira tem muito concorrente, aí nós tem que ter inovação. Tem que ter coisa diferente. Todo mundo em Passira borda, mas cada uma tem a sua característica diferente. Aí tem que inovar no risco, botar uma bainha diferente, e hoje em dia tem a internet que ensina também.
Em cima do risco a gente faz o diferente, entendeu? Porque Passira tem muito risco copiado, as pessoas copiam muito. Botam o papel manteiga por cima e do mesmo jeitinho faz ele, ele vai ficar igualzinho. Mas, mesmo que eu faça o mesmo desenho, cada um tem uma forma de bordar diferente.
A SENSAÇÃO DE PLANTAR É MAIS
Tudo que plantou deu? a gente deixa.
Olha eu vou dizer a você a sensação de plantar é mais, é mais. Porque a gente vê… o que me faz ficar mais tempo em casa é o sol quente, o sol é quente, mas de manhã quando você vê a lavora bem tudo verdinha ela chega fica assim, ó, “voando”, é muito bonito a gente ver e a gente ter no roçado jerimum pra buscar, ter fava, ter feijão, milho pra gente quebrar aí o tanto que quiser, é bom demais!
E O BORDADO É BOM
E o bordado é bom, eu gosto de fazer meu bordado, porque é uma coisa que me interte. Em vez de eu tá o tempo que eu tô em casa dormir, eu tô fazendo alguma coisa e tô ganhando alguma coisa. Tá entendendo?
Seis horas eu me levanto, faço o serviço, aí depois pego o bordado, aí eu me sento aqui e vou bordar. Eu marco a bainha, eu mando também as meninas (que moram por perto) fazer, as meninas também faz. Eu não faço tudo não.
Se eu tiver com pressa, que tiver chegando a feira, se eu mandar fazer uns risco bordado elas também bordam, entendeu? que é vizinha aí borda. Todo mundo na comunidade borda.
PASSIRA TEM A CONCORRÊNCIA DA MÁQUINA
Passira tem a concorrência da máquina, que eu acho isso muito errado e o preço de Passira são preços que não é justo, é pouco dinheiro, é pagando pra trabalhar em Passira. Paninho de água de 10,00 não existe, que se você for calcular tudinho não dá nem pra botar os custos.
Virou a terra do bordado acho que porque todo mundo começou a bordar, né? em Passira todo mundo borda. Quem não tá bordando, mas sabe bordar.
TUDO PRA MULHER É MAIS DIFÍCIL, NÉ?
Hoje em dia as mulher é mais independente, mas, tudo pra mulher é mais difícil, né? a mulher é mãe, dona de casa, aí pra ela fazer tudinho…aí faz 1001 coisas, é difícil, eu acho, apesar de hoje em dia a gente ainda já tá muito independente.
Eu acho difícil, assim, por causa da sociedade, mas, assim, eu me sinto uma mulher independente desde os meus 11 anos, desde que eu comecei a parte de eu trabalhar no roçado não era independência, isso era necessidade; eu trabalhava mas não recebia por aquilo, porque a gente trabalhava pra casa. E o bordado fez com que eu começasse a ganhar o meu dinheiro.
A GENTE PRECISA TER UM TRABALHO PRA SOBREVIVÊNCIA
Trabalho é preciso, a gente precisa ter um trabalho pra sobrevivência e pra independência também, porque a gente só tem as coisa se trabalhar, se não trabalhar não tem.
PRA ONDE EU QUISER IR EU VOU
A dificuldade da mulher é que ela é sobrecarregada, têm muitas coisas que ela tem que ficar responsável, já começava por ser dona de casa, ter preocupação com filho, preocupação com marido, ainda a gente acha tempo pra conquistar nossa independência; eu vejo dessa forma e eu sou independente. Porque eu quiser ir agora pra Recife eu vou, pra onde eu quiser ir eu vou.