Renata e Bruna

Renata e Bruna

Bruna e Renata são irmãs, designer e publicitária, respectivamente, e juntas formam a dupla a frente da Vem Meu Bem. Em suas trajetórias profissionais, elas se complementam de maneira natural, assim como na vida pessoal. A relação das duas é admirável: como irmãs, parceiras e jovens mulheres que se identificam, ao mesmo tempo que são tão diferentes. Uma é mais romântica, a outra mais objetiva; uma é mais filha, a outra mais mãe.

A presença marcante de sua avó também aparece com frequência em nossa conversa. Ela é uma grande referência de beleza e elegância para as duas, traduzida em seus grandes brincos e nas suas habilidades com linhas e agulhas, que povoam a memória das duas irmãs.

A Vem Meu Bem é uma marca contemporânea, cheia de referências culturais e musicais do Recife, território que as inspira. Ela reflete a paixão das irmãs pelo carnaval, pelas artistas brasileiras e pela atmosfera local. São cores, contas, traços e textos que falam sobre elas mesmas, questionando padrões e reinterpretando a técnica do crochê. As duas empreendem com suas agulhas, resgatando e resignificando esse ofício para escrever uma nova história.
Como uma de suas peças diz: “Toda obra de arte é uma confissão.”

(conversa realizada em junho de 2022)

Narrativa

A GENTE É DE PAUDALHO

B: Eu só nasci em Carpina. Renata só nasceu em Recife, mas a gente morou lá [em Paudalho] Eu tinha uns doze anos quando a gente veio pra cá [Recife], pra estudar.

R: Eu tinha cinco, seis [anos].

B: Acaba que a gente vem pra Recife pra estudar, pra projetar uma vida. Viemos com nossos pais, mas meu pai continua, na verdade, com negócio lá, vai e volta todo dia.

B: Meu pai é José Emiliano, minha mãe Cecília Natalício, faz uns quinze anos que eles se separaram, e meu irmão é Luiz Malta, ele mora no Rio agora, ele é Chef de cozinha.

B: Paudalho era aquela cidade que todo mundo se conhece. Nosso pai tem empresa lá, então todo mundo conhece ele também. Lá tem tradição de carnaval de clubes, desfiles, fantasias. Então, nossas avós faziam as fantasias, desfilavam nos clubes. O sonho da minha avó era eu quando tivesse quinze anos fosse desfilar no clube. Tem foto do nosso pai desfilando de fantasia no carnaval, ele tinha desfilado só pra ganhar um ingresso pra ir de graça na “Manhã de Sol” que chama, a festa. Mas tem todo esse envolvimento com a coisa do carnaval.

VOCÊ É A CARA DE SUA AVÓ

B: Eu sempre fui muito quieta, gostava de ficar em casa, fazendo crochê, aprendendo a cozinhar. Desde pequena, a moça que trabalhava na minha casa, eu ficava o tempo todo grudada nela aprendendo a fazer as coisas. A nossa avó por parte de pai, Nira, era professora, mas na casa dela ela tinha um espaçozinho que ela fechou com as máquinas de costura dela.

Ela era muito elegante assim, tem fotos dela assim com terninhos muito bem cortados, umas saias muito bem feitas. Ela sempre gostou muito de estampa e era uma mulher alta. Se eu for em Paudalho agora sempre vai ter alguém que vai dizer assim “Sua avó foi minha professora, você é a cara de sua avó”.

R: E todo mundo vai dizer dos brincos.

B: Os brincos enormes! Ela morava bem no Centro da cidade e a gente morava também no Centro, mas um pouquinho mais afastado, e ela vinha andando pela rua falando com todo mundo e quando ela chegava na Praça parece que o ambiente já tava se preparando pra chegada dela, porque ela vinha falando com todo mundo, sempre com uma roupa muito estampada, muito arrumada, muito cheirosa, então ela era assim impactante. Tinha uma risada alta, e eu sempre gostei muito de estampa e minha mãe falava “Os gostos da sua avó”, eu só vim entender os gostos da minha avó como uma coisa boa, que me orgulha, que eu tenho assim com carinho depois de muito amadurecer. Que eu entendi assim que os “gostos da minha avó” é o melhor que eu tenho. É o melhor que me foi dado, na verdade.

ERA DE AQUÁRIO

B: Lá [em Paudalho] tem dois clubes principais, Os Lenhadores e o Estrela. Assim, não é um concurso, mas há uma rivalidade. O Estrela é vermelho e branco e Os Lenhadores é vermelho e preto. Aí, domingo, segunda e terça [de carnaval] tem o desfile de fantasias pela rua, fantasia tipo escola de samba mesma, mas lá não é samba, é frevo tradicional daqui. Muito parecido com as técnicas de bordado de gola de maracatu, muito paetê, lantejoula mesmo bordado, muita pluma e são sei lá, na minha memória assim acho que quinze meninos e meninas desfilando pelas ruas principais da cidade, com carro de som atrás narrando.

Assim, minha infância inteira eu me lembro que o tema era “Era de Aquário”. Não lembro nunca de ter mudado esse tema. Atrás do clube, da narração, vem uma orquestra de frevo e a galera curtindo atrás da orquestra de frevo, aí passa um clube e depois passa o outro. E o porta-bandeiras cumprimentam as famílias na porta de casa, assim. É uma lembrança muito bonita que eu tenho.

ERA TUDO HERDADO

B: E minha vó levava super à sério, ela se arrumava nas cores do Estrela, que ela gostava do Estrela. Pra assistir, pra cumprimentar o estandarte. Ela fazia fantasia pra mim, uma fantasia de bailarina.

R: que eu usei também.

B: Vermelha e branca, ela fazia a fantasia, mas tinha que ser nas cores dela.

R: Tem várias fotos assim de Bruna com um vestidinho na formatura do ABC, e tem uma foto minha brincando em casa com o vestidinho.

B: Principalmente de festividades, de São João, de Carnaval assim, era tudo herdado. Uma coisa que minha mãe gostava de guardar eram essas coisas assim da gente pequenininho.

R: Roupa de bebê assim, tem foto do meu irmão que é bem mais velho do que eu com a camisetinha e eu com a camisetinha.

B: E, Renata que veio muito depois, e assim, minha mãe não esperava mais ter filho e tal, e tem Renata com roupa de menininho.

ADAPTAÇÃO

B: A gente foi pra Boa Viagem [bairro do Recife] e aí, no começo, meus pais tavam comprando apartamento aqui, o apartamento não tinha ficado pronto, aí, o começo do ano escola a gente ia e voltava pra Paudalho todo dia. A gente acordava super cedo ouvindo “Bandeira Dois”, que minha mãe acorda todos os dias ouvindo rádio AM. E, durou uns meses assim nesse ritmo.

R: Minha adaptação foi horrível. Assim, até quando eu estudava no interior eu era chorona na escola, não gostava de ficar na escola, aí, quando a gente veio pra cá tinha todo essa coisa de acordar muito cedo, e vim pra outra cidade, e aí…

B: Renata se encontrou na faculdade.

R: É, a escola toda eu fui péssima, eu nunca cheguei a reprovar, mas eu chegava perto.

B: Eu fiz administração na UPE, depois eu fiz Design de Moda no SENAC e fiz o mestrado lá na Rural [UFRPE].

R: Eu estudei Cinema na AESO e quando acabei fiz uma pós na Católica [UNICAP], que também era na área de Fotografia e Audiovisual, e agora eu tô estudando Design Gráfico.

B: Acabou que Renata fica nessa parte do Instagram, do site [da marca delas Vem Meu Bem] que a gente tem agora. Renata fica bem ligada nessa parte de fotos, do visual e até do tipo do fundo utilizar, fazer uma gracinha, o que é que tá rolando… é com Renata que é a jovem (riem).

A GENTE SEMPRE FOI MUITO PRÓXIMA APESAR DA DIFERENÇA DE IDADE

B: A gente tem uma diferença razoável de idade. A gente sempre foi muito próxima apesar da diferença de idade, mas eu sempre fazia roupinhas pras bonecas de Renata, fazia casinha com as caixinhas de remédio, fazia as caminhas, as coisinhas, e aí ela foi crescendo e aí eu já fui me chateando que eu “ah, você tem que aprender a fazer”, aí eu fui começando a ensinar a ela as coisinhas mais fáceis e eu comecei a fazer as roupas pra mim, aí ela pedia roupas pra ela também, eu fazia, mas dizia “não, você tem que aprender a fazer, faça, é assim assim assim”.

R: Comprava um tecido e demorava dois anos pra ser cortado.

B: Fantasia de carnaval, eu fazia alguma fantasia pra mim e fazia alguma coisa pra ela também, ela ficava pedindo e eu “você tem que vim ver como é fácil costurar, venha pra máquina” aí ensinava.

MALTA MOCHILAS

R: Teve uma época que a gente costurava mochila também. Que foi quando eu aprendi mais a costurar de verdade.

B: Foi quando a gente começou a vender alguma coisa. Eu tava na faculdade.

R: Eu tava no colégio. Isso foi 2014, eu ainda tava na escola.

B: Era “Malta Mochilas”. A gente fazia mochilas e foi a primeira vez que a gente teve coragem de… todo mundo perguntava “ah, tu faz pra vender?” eu “não, porque tem o avesso e eu que sei como é…” mas a gente foi criando coragem e começo nas mochilas e sempre tinha coisa assim, uma amiga: “ah, eu vou aí, pra tu fazer um negócio, uma roupa de carnaval”, aí a gente foi criando coragem pra colocar o bloco na rua.

EU ENSINEI RENATA A COSTURAR, O CROCHÊ TAMBÉM

B: Eu ensinei Renata a costurar, o crochê também. [O crochê] Quem me ensinou foi minha vó Nira que eu pequena ela sempre tava trazendo alguma coisinha assim pra me ensinar e aí eu sempre fiz, criança eu não conseguia fazer uma roupa, aí fazia uma roupa que achava que ia caber em mim mas não cabia, fazia bem pequenininha, mas aí sempre fui fazendo, uma roupinha de boneca.

Uma linha que tinha perdida em casa, eu me lembro que tinha uma linha amarela e uma linha preta, mas era a linha que tinha em casa aí ia fazendo alguma coisa com o que tinha em casa. E, sempre fui fazendo, fazendo alguma coisa pra mim, alguma roupa que eu pensava ” só eu que tinha coragem de usar, mas eu fiz” e assim foi… na escola tinha essa coisa de Humanas com uma cor, Sáude de outra cor, aí eu colava uns paetês na minha farda.

R: E lembro que não podia usar calça rasgada e lembro que fizeram tu costura e tu costurava com a linha laranja.(ri)

B: Renata crescendo na escola aí tinha uns trabalhos de fantoches, aí a gente fazia juntas, uns bonequinhos. Meus métodos não são muito pacientes, são bem assim “pare de me pedir, veja como é que faz, olhe aqui, tá vendo?, agora faça!”

R: Ou então era: “vai ficar assim?”

No crochê não faz tanto tempo, quando as coisas começaram a sair foi um pouco antes da pandemia. Que eu comecei a fazer roupas que eu usava, mas eu sempre tentei, mas nunca saiu nada, saia trancinhas e quadrados. Aí acho que quando a gente começou [a Vem Meu Bem] que eu comecei a fazer roupas, né?

VEM MEU BEM

B: Quando a gente começou a Vem Meu Bem Renata fazia acabamentos. Eu fazia “Renata, faz um acabamento, passa uma correntinha na roupa todinha”, “Renata, tu já consegue fazer as casinhas do top, né?, e as alças, né?” pra começar a me ajudar no meu trabalho.

R: Eu acho que a primeira roupa que eu fiz foi em julho de 2019, por aí, e a gente começou no final do ano né? [a Vem Meu Bem].

B: Começaram os conflitos também assim, que eu fazia a estampa que eu queria e ela não tava participando disso porque era eu que fazia a estampa. Aí eu disse “então aprenda a fazer a estampa”. Aí os métodos são esses, sabe?
Assim, mas o crochê valendo de construir uma roupa. Mas sempre teve assim um “vamo bordar uns paetês numa coisa, vamo costurar a mão uma roupinha, vamos fazer roupa de barbie com balão de festa”.

R: Eu lembro que tu dizia há muito tempo que era um bom nome “Vem Meu Bem”.

B: Eu não lembro exatamente de onde veio [o nome Vem Meu Bem], mas eu sempre imaginava assim, 3 por 3 né?!, as três letrinhas o “e” que ficam no meio. Esse quadrado assim.

R: Eduardo que estudou comigo na faculdade fez a marca da gente. Quando a gente disse “ó, a gente vai começar” aí ele “quer que eu faça” e a gente “quero”. Aí ele dizia a gente vai fazer um “Vale a pena ver de novo” os “E´s” assim. (ri).

B: Tinha a ideia desse nome e tem um cantor que eu gostava, gosto, mas na época eu gostava muito e ele tinha uma música “Vem meu bem…” e eu disse “é isso, só pode ser isso” e ficou esse nome.

A GENTE SEMPRE TEVE MUITO JUNTO EM TUDO

R: Sempre teve essa coisa de compartilhar essas coisas. Mesmo nas coisas que eram dela eu me envolvia. Logo que eu comecei a faculdade, tu tava terminando, acho que eu tava no primeiro semestre, segundo semestre da faculdade e a gente fez o trabalho de conclusão de curso dela, eu chamei meus colegas de turma pra fazer o “Fashion Filme” que era o TCC de Bruna.

B: Essa coisa de morar juntas e até na configuração familiar a gente sempre teve muito junto em tudo assim. Desde Renata chorando na escola e eu estudava lá então eu ia no recreio ver como Renata tava, os trabalhos de escola eu me envolvia muito nos trabalhos de Renata. Os meus trabalhos de faculdade que tinha essa coisa de filmar, foto, Renata se envolvia muito. Tudo na vida da gente é muito compartilhado assim. Até as experiências de… eu fazia produção de figurino pra comercial aí eu “ó, Renata, tem um estágio, figurino, cinema vai?” aí ela ia também.

E foi sempre assim, um amigo fez a logo [Logomarca da Vem Meu Bem], e a amiga tira foto e foi caminhando. O amigo da faculdade de administração mas que também não se achou em administração e gosta de tirar foto disse “vamos fazer um ensaio” aí a gente vai agregando assim os talentos.

TODAS AS PEÇAS PASSAM PELAS DUAS

R: Um traço importante é que a gente sempre troca de peça uma com a outra, por exemplo, eu comecei fazendo o acabamento, então Bruna terminava e passava pra mim. Então ela ta fazendo uma peça e aí ela me dá e eu acabo concluindo ou fazendo uma parte e passo de volta pra ela.

B: Todas as peças passam pelas duas. Que é uma coisa que no crochê é meio atípico porque todo mundo tem um ponto diferente, um mais apertado, um mais folgado, mas todas as peças da gente acaba passando pelas mãos das duas.

R: Quando eu chego e vejo que tem um novelinho em cima da mesa eu sei que pronto, tenho que dá continuidade.

B:É uma comunicação, eu deixo na mesa com a linha e no ponto que tá parado, ela já sabe, já pega e já dá continuidade.
Renata gosta muito de fazer as costas toda de uma cor, eu fico extremamente irritada se eu tiver que fazer todo de uma cor assim, ela faz e faz rápido.

R: Às vezes a gente nem se fala. Se eu ver que tá bem dobradinha com um novelinho em cima assim eu já sei que é pra mim.

CAMPONESA E MODERNA

B: A gente troca muita referência, né? Ou conversa sobre alguma coisa, uma frase que ficou na cabeça, um desenho que tá afim de fazer… é muito livre.

B: [Estilo] Eu digo que Renata é a camponesa, do floral, dos babados e mais jovem assim, dos croppeds. Assim é a camponesa floral

R: Bruna é feito a minha vó: brincão. Também gosta de estampa, mas às vezes ela é neutra assim, muito moderna.

CONSTRUIR ESSA IDENTIDADE

B: Eu digo assim, eu não faço nada que eu não goste. Todas as roupas que eu faço eu gosto. Se eu tiver na metade e não tiver gostando eu desmancho todinha e não faço, não concluo. Então tem uns elementos de identificação pessoal mesmo assim. A coisa do tubarão, eu gosto de tubarão, tenho tatuagem de tubarão, tudo de tubarão, essa coisa de Recife, isso é uma parte de nossas referências assim, é uma coisa de dizer é feito em Recife. Tem outra parte que tem essa coisa de uma expressão muito romântica, muito coração, muito amor. Tem essas coisas muito intimas, muito pessoais e que a gente coloca.

Mas também tem a parte de entender quem é o público da gente. Que são pessoas mais jovens, que gostam de referências de obra de arte. E, tem que ter esse olhar mais comercial de “vai vender? vai interessar?”.

Tem um viés mais político, que é de assumir uma posição, é abrir mão talvez de alguém que vá comprar, mas é também construir essa identidade, né? é construir a marca da gente.

Não teve plano de negócio, foi fazendo e entendendo “quem tá comprando? quem está se interessando?”

Começou feminino e alguns meninos vêm pedir algumas coisas. A gente vive nesse momento tão bom de entender que roupa não tem gênero, né? E, a gente tá começando a atender essas questões. Mas a gente faz questão num ensaio que a gente fez colocou um menino pra mostrar que tem essa possibilidade.

QUANTO TEMPO LEVA PRA FAZER UMA PEÇA?

[A Vem Meu Bem] é o nosso trabalho principal. Não é fácil porque se a gente pensa assim “quanto tempo leva pra fazer uma peça? eu consigo vender pelo preço que eu acho justo? pela minha hora de trabalho não só justa, mas a que eu preciso , né? ”

Então, a Vem Meu Bem começou com o investimento de seis lá, três novelos de linha, verde, amarelo… era as cores do reggae. A gente começou com a consciência que a gente tava vendendo por um valor realmente assim de “vamos tentar entrar no mercado”. Porque não pagava nem nosso trabalho nem nossas despesas.

OUTROS LUGARES

Então foi muita aprendizagem, a gente começou a vender numa loja colaborativa aqui do Espinheiro, que a gente tinha que pagar o aluguel do espaço e o percentual da peça vendida. E aí não saia muito.

Nessa época e ainda hoje a gente não tem essa venda aqui em Recife e Região como a gente vende para o Sudeste. Eu acredito que a oferta de trabalho manual aqui é tão rica que as pessoas não valorizam tanto. Aí, o Instagram possibilitou isso, que o que a gente tava fazendo aqui chegasse imediatamente em outros lugares.

Agora a gente sente um pouquinho voltar pra cá, de ter ficado um pouquinho mais conhecida e as pessoas procurarem. Enxergar diferente assim que não é o crochezinho do pano de prato.

Nada desmerecendo o pano de prato que é o mesmo trabalho e envolve muito mais complexo do que a gente faz. Porque que utiliza pontos…. como a gente trabalha a estampa a gente usa pontos básicos, o nosso mote é o desenho, a estampa frase, e [no pano de prato] tem trabalhos mais complexos que eu não sei nem pra onde vai. Mas de vender que tem mais informação, que tem mais conteúdo que uma barrinha [de pano de prato].

E COMO É TRABALHO MANUAL EM ATACADO?

B: [O crochê] É algo caro e a gente faz só. A gente nunca terceirizou nada e até teve assim parceria de marcas nacionais assim, e a gente ia ter que ter ajuda de outras pessoas, mas quando chega na hora de entrar a pessoa do financeiro na reunião aí diz “ah, eu tenho que vender por “3.5” valor que você me vende. Em atacado… e como é trabalho manual em atacado? e diz assim “você tem que baixar o seu preço ” pra que ele consiga, não abrindo mão da margem de lucro do “3.5” ele ter um preço vendável no ponto de venda dele.

Iaí, eu disse: “como é que eu vou pagar menos de setenta reais pelo dia de trabalho da pessoa?” A gente encontra quem trabalhe por menos que isso o dia do crochê, eles também já sabem, porque eles já têm crochê dentro da coleção deles, mas simplesmente era uma coisa que a gente nem dormia se eu pegasse [esse valor para] alguém pra fazer…

Tem gente precisando trabalhar, querendo trabalhar, mas é um mercado muito irreal. Tem uma grande marca de crochê no Brasil? eu desconheço. Tem assim uma estilista. Pronto, tem Vanessa Montoro que é lá de Parati, mas ela consegue vender as peças dela por um preço prime, que a gente não acessou ainda esse reconhecimento de marca, né?

CROCHÊ COMO TÉCNICA PLENA

R: O gráfico que eu fiz, era uma ilustração, eu pego uma foto e em cima da foto faço uma ilustração e em cima daquela ilustração a gente aplica um filtro ou faz alguma coisa que a gente consiga visualizar melhor. Às vezes é uma loucura. O de Bruna é muito pior. Por exemplo, ela vai fazer o do Matisse, ela pega um quadro às vezes que não tem nada de que você consiga distinguir, não é um vetor, é uma foto.

Eu só consigo fazer uma coisa depois que eu faço um vetor. Bruna pega uma foto e diz assim: “ah, aqui vai ser preto e aqui vai ser marrom”, e pronto! Eu não consigo lidar com as coisas assim…

B: Já dei aulas em algumas faculdades que as professoras chamam pra dar aula, mas se chamassem assim aula pra quem já tem um conhecimento básico ia fazer crochê muito melhor do que eu.

R: Bruna tem muito isso, ela não vai lhe dar a resposta que você quer, ela vai lhe deixar encontrar a resposta

B: O que eu queria era ensinar as pessoas a criarem seus gráficos. Existe você fazer estudo de cores e também existe seu coraçãozinho. Ver muitas referências e ir guardando aquilo, então, o que eu penso pro futuro de a gente talvez seguir, não abandonando a coração, não abandonaria nunca, mas essa parte de ensino da técnica envolvida com outras coisas. Com entender o crochê como trabalho, entender como possibilidade criativa, que não fique só numa tendência de moda de um ano e no outro ninguém quer saber de crochê. que fique como técnica plena. O crochê inserido em tudo isso, não só dizer “olha, o gráfico de uma florzinha”.

R: E dá a liberdade da pessoa fazer o que é do coração dela.

B: Porque você vai colocar o seu repertório na peça. Ninguém vai ser igual.

R: Rola muito isso, de ser um trabalho manual e tá todo mundo acostumado a replicar, aí acha que se você tá lá você vende a receita. Ou que tudo bem imitar.

B: Ah, rola direto, comentário “fulana, faz pra mim!” no comentário da foto da gente [do Instagram da Vem Meu Bem] “amiga, faz pra mim” aí eu comento “se a amiga não fizer a gente faz! (ri).

O MEU DIA É TODO FAZENDO CROCHÊ

R: Tem dia que a gente nem se vê dentro de casa. Porque Bruna tem hábitos noturnos, e às vezes a gente não se bate em casa.

B: Eu prefiro trabalhar madrugada adentro. Aí troca de turno, quando eu tô indo dormir Renata tá acordando. Minha rotina basicamente é crochê, crochê e filme, crochê e muita série de gente morta (ri), é porque eu assisto aquele Discovery ID que é um canal só de crime. Eu sento aqui nesse sofá e fico aqui fazendo as peças.

R: Quando a gente se encontra na hora do Clone [novela] aí, a gente faz junto as coisas. Na hora de Pantanal, na hora da novela…

B: Aí, conversa alguma coisa, vê o que tá faltando, o que tem que comprar, alguma ideia como a gente tá fazendo agora, toda quinta-feira vamos botar uma peça em promoção. Uma peça que ficou injustiçada e ninguém comprou e a gente vai colocar um desconto nas quintas-feiras pra vender uma peça.

Já tinha uma época que eu tinha uma dorzinha no meu braço, mas calejou. Mas o meu dia é todo fazendo crochê, salvando referências. Quando eu tô no meio de uma peça eu já tô louca pra terminar e começar a próxima.

R: Eu estudo e geralmente eu deixo um dia na semana só pra estudar e fazer minhas coisas. Eu sou muito assim se eu começo uma coisa eu tenho que acabar ela se não não vou descansar na minha vida. Aí, eu prefiro deixar um dia pra estudar, dois dias assim fazendo tudo que eu tiver pra fazer. E quando eu pegar uma roupa pra fazer eu vou fazer ela da hora que eu acordar até a hora que eu dormir.

B: Os cuidados com Fred [o cachorro], Fred sempre no meio do crochê. às vezes leva um novelo pra lá, às vezes deita aqui no novelo. Ele adora deitar nas bolinhas aqui.

É muito misturado com o cotidiano. Essa coisa de trabalhar em casa… vou ali fazer uma coisa da minha vida, vou me deitar pra dormir. Não consegui dormir, vou levantar pra trabalhar. Eu acho que [trabalho] doze horas.

R: Geralmente a gente tenta ter duas peças novas por semana e encomendas. Nem sempre isso é possível.

B: Esse negócio de fazer crochê doze horas por dia foi a pandemia que forjou isso. Eu ainda tô muito caseira. Eu só saio de casa pra terapia, porque eu tô voltando a fazer no consultório, mas muito em casa assim.A gente ia muito pra cinema, barzinho, bar de ficar sentado.

[Em] consultório sempre [leva o crochê] no uber, sempre o motorista “ah, minha mãe faz isso”, sempre. eu não sei muito fazer mais nada sem o crochê.

R: Eu tentei aprender tricô adoslescente, ou tentava fazer crochê eu levava muito no ônibus, pra faculdade.

PASSINHO PELA LUTA E UM PASSINHO PELO MERCADO

B: Eu não faço muitas roupas que cabem em mim e por isso eu não apareço tanto nas fotos [ no perfil do Instagram da Vem Meu Bem]. Porque até M e G vai caber em Renata, em mim, não vai caber. Só vai caber se for GG. Então eu não apareço, gostaria de aparecer mais. Mas por uma questão de vender realmente… As peças GG não tem tanta saída, é por isso também que eu não apareço tanto.

Eu acho que hoje isso está mudando um pouco, mas a oferta de roupas pras pessoas que vestiam roupas maiores, é sempre muito sem graça, séria. E eu acho que ficam muito reticentes de vestir uma roupa colorida, uma roupa que chame tanta atenção pra si. Eu não tenho esse problema não.

Eu não posso levantar essa bandeira sozinha, eu não tenho nem condições disso, de fazer uma coleção, de chamar um monte de amiga gordinha linda e bancar isso. A gente que é pequeno é um passinho pela luta e um passinho pelo mercado que vai pagar os boletos, né?

E é uma coisa que me atinge pessoalmente, de ver tanta gente magra usando coisas que eu faço e que eu não tô usando, que eu não poderia usar. Isso me deixa confusa, com umas nóias de vez em quando, só os outros vão ser bonitos pelas minhas mãos?

A Vem Meu Bem mexe muito com o que passa assim pela gente. Eu nessas quintas-feiras de promoção disse “Renata, eu vou falar, eu vou aparecer mais”. Talvez eu aparecendo mais… tem algumas clientes que compraram peças grandes e dizem assim: “ah, veste em você que eu tenho uma ideia de como fica em mim”, acontece.

É um trabalho que envolve minha autoestima, essas peças grandes, mas envolve eu pagar meus boletos também, né?

LEVAR A VEM MEU BEM MAIS LONGE

B: Eu penso em viver de criação de roupa, não só crochê. Penso em passar um tempo fora do país, talvez aprender outras coisas, levar o que eu faço pra lá também. Já é mais do que um sonho é um plano. Levar a Vem Meu Bem mais longe e entender até onde ela pode crescer, pela limitação do artesanal também, continuando dentro dos valores da gente de justiça de tudo. É isso que eu pretendo fazer da vida.

A GENTE É MUITO TESTADA , HÁ UM PADRÃO PARA TUDO QUE UMA MULHER FAZ

R: Eu acho que ser mulher, a gente é muito testada. é uma coisa que eu tenho pensado muito assim, é sobre a empatia das pessoas, tanto de uma mulher pra outra e de como os homens percebem o que a gente vive. De como a gente percebe umas às outras, do que a gente vive de semelhante e diferente.

B: Eu acho muito difícil [ser mulher]. Eu acho brabo demais assim, ser mulher todos os dias. Há um padrão para tudo que uma mulher faz, tudo que uma mulher é. Então, ou você se enquadra ou você vai comprar uma briga muito difícil pra sua vida, pro seu cotidiano. Se eu não me encaixo em padrões estéticos, ou não tenho filho, sei lá… há um padrão pra tudo.

Então, eu acho muito difícil ser mulher nesse mundo apesar de ter consciência de que eu me encaixo em vários privilégios também. Não sei como uma mulher que é mãe, que é negra, que tem menos dinheiro que eu não sei como é que faz porque eu já acho muito difícil.

Acho muito sofrido ser mulher. Se o mundo fosse governado por mulheres talvez o mundo não estivesse do jeito que está. Quando se falasse em guerra se pensasse “eu quero meu filho numa guerra?” . Tem hora que você diz “que bom que eu pertenço a esse grupo”, mas tem horas que é bem pesado, que é muito restritivo, ser uma mulher.

De ouvir seu pai dizer “tem coisa que só homem pode fazer, então eu não vou lhe dá essa oportunidade que eu dei pro seu irmão”, sabe? Então tem hora que você fica extremamente cansada e revoltada.

R: Como eu tava falando essa coisa de empatia…Como a gente foi treinada pra competir parece que a gente não se coloca no lugar da outra. E os homens nunca vão entender o que de fato se passa.

MULHER FAZ CROCHÊ PRA COMPRAR AS COISINHAS DELA

B: E, quando você é mulher e teve algum acesso à educação formal, que foi pra uma faculdade que fez um mestrado, escolhe fazer crochê, existe todo uma imagem que quem faz crochê é mulher, não é homem que faz crochê. E, uma coisa que minha terapeuta falou uma vez e eu levei pra minha vida assim é “mulher faz crochê pra comprar as coisinhas dela”, a expressão. E se você se propõe a fazer isso da sua vida com as oportunidades, com as coisas que você leu… Você tem que se explicar muito pro mundo do porquê você escolheu aquilo.

Ou você tem que lidar com o preconceito que aquelas mulheres que só conseguem acessar isso de fazer o crochê pra pagar as coisinhas dela, você entende o que ela sofre. Pelo espaço que ela não tem pra fazer mais do que aquilo, ou porque as pessoas não dão valor aquele trabalho, porque é um trabalho feito por uma mulher que é mãe, por uma mulher que trabalha em casa. Parece que o fazer do crochê, o fazer manual, e tantos fazeres aí é rebaixado ao mesmo lugar que se rebaixa o trabalho da mãe, o trabalho da mulher que cuida da casa. Então a gente entende e sente isso aí!

[Quando um homem se propõe] “Ah, ele é tão exótico” “ele é tão interessante”, “ele pega na agulha todo desgrenhado” e todo mundo acha tão bonito.

Eu acho [que sofre preconceito] porque [o crochê] é coisa de mulher, é coisa que não é pra ser profissionalizada, não é pra ser paga com justiça.

As pessoas que vem comprar com a gente e voltam é porque entendem esse processo todo.