por Clara Nogueira
17.847 habitantes (estimativa 2017, IBGE)
Área 69,6 Km²
Zona da Mata Norte de Pernambuco
Localizada entre o Rio Tracunhaém e o Rio Capibaribe, e entre as cidades de Carpina, Limoeiro, Lagoa de Itaenga
61 km do Recife
Lagoa do Carro se tornou cidade há 26 anos, mas a ocupação de seu território e a luta pra torná-lo um município independente carrega uma história longa e antiga. Risolange Rodrigues1, que carrega o riso não só no apelido, nos contou que “Lagoa do Carro é uma cidade bem antiga, ela vem do período provincial. Pertenceu a Olinda, a Igarassu, pertenceu a Nazaré da Mata e pertenceu a Carpina, foi emancipada na década de 1970, aí voltou a pertencer a Carpina; quando foi em 1991, foi finalmente emancipada, mas ela é uma cidade histórica. A Padroeira daqui tem 278 anos, normalmente a cidade é contada, a idade dela, a partir do padroeiro, porque era um costume dos jesuítas, né? Eles vinham e colocavam logo a igreja pra poder trazer as pessoas”.
Segundo consta, a origem do nome da cidade se deu a que, anos atrás, um carro de boi carregado de tijolos caiu numa lagoa. Os moradores, após o episódio, de tanto que se referiam à “lagoa que caiu o carro”, transformaram o ainda vilarejo, de “Terra de Santana”, em Lagoa do Carro.
Nos anos 1970, quando Teresinha Lira2 chega a Lagoa do Carro trazendo a tapeçaria, a, hoje cidade, era ainda distrito de Carpina. Parte de sua população morava em sítios, engenhos e fazendas. Os canaviais eram responsaveis pelo sustento de muitas famílias, e a pobreza tinha casa por aqui. Os moradores foram aos poucos migrando para o centro, chamado de “rua”, e muitas famílias foram se desmembrando entre cidades que lhes apresentassem um pouco mais de oportunidade. Lagoa do Carro não tinha uma situação econômica que comportasse a necessidade de seus moradores, nem infraestrutura adequada. Na época, não se tinha água encanada, por exemplo, e algumas mulheres e crianças faziam o serviço de carregar água para abastecer as casas daqueles que pudessem pagar, chamavam de “água de ganho”. Estes e outros serviços eram o sustento de muitas famílias que moravam no centro. Não se tinha luz elétrica também e se fazia os tapetes na luz do candeeiro, como nos conta T3: “Eu comecei a fazer tapete eu tava com quatorze anos de idade, eu fazia tapete na luz do candeeiro, tu já sabia? Na época, não tinha luz em Lagoa do Carro. Fazia na luz do candeeiro, de noite, todo mundo ia dormir eu ficava ali… eu botava um tapete desse… eu não fazia pra mim não, fazia pra Casa Caiada, entendesse?”
Em Lagoa do Carro passava-se fome de um jeito que não existe mais, conta-nos L.4, saudosa do tempo do sítio, mas que nele também passava necessidade.: “Ah, na época eu gostava, no sítio. Na época, eu achava bom no sítio também. Naquela época, eu lembro que minha mãe mandava eu limpar feijão, ela já mandava a gente apanhar pimentão, plantar batata, macaxeira, a gente era pequena mas já ajudava meu pai, né? Que eles eram agricultores e ela já mandava. Aí, quando a gente veio pra rua foi assim uma coisa diferente, né? Porque lá era um sítio, uma casa distante da outra. Mas minha mãe como tinha muita necessidade por conta daquele tempo, eu digo que naquele tempo o pessoal sabia o que era fome e hoje não sabe mais”.
As vilas do centro foram então comportando mais e mais casinhas. A passos lentos, foram chegando os comércios, serviços e instituições. O centro oferecia proximidade a esses estabelecimentos, e a cidade foi crescendo. Mas, ainda hoje, a principal fonte de renda de seus moradores é a agricultura5, e quase metade da população (48,5%) ganha em média 1,8 salário mínimo. Segundo Cícero Antônio da Silva, autor do livro Lagoa do Carro – Retratos de Um Povo em Contos, Versos e Prosa, exposto em destaque na biblioteca da cidade, “a terra é boa pra o cultivo de feijão, mandioca e algodão”. Mas o cultivo predominante era o da cana-de-açúcar “graças aos colonizadores que aqui chegaram”.
A lã do tapete se emaranha com a história de Lagoa do Carro em 19756. Teresinha Lira, nesse momento, trabalhava para a Fábrica de Tapetes Casa Caiada de Camaragibe, e andava por vilarejos à procura de mulheres que suprissem a demanda do fazer da Fábrica. As mulheres, sem oportunidade de emprego na cidade, logo souberam da vontade de Teresinha e encheram suas aulas. Teresinha alugou uma casa ao lado da Lagoa para ensinar a centenas de mulheres que apareceram, e estas quando aprendiam ensinavam outras, e assim a história da tapeçaria teve seu início por aqui. “Ela chegou aqui numa casa aqui em Lagoa do Carro, alugou um casarão e ficou, e chamou umas vizinhas do casarão, pra chamar umas meninas pra ela ensinar a fazer esse tapete. Aí ela levou uns tapetinhos assim pra mostrar às meninas. Aí rateou a cidade, a cidade que era pequenininha, nera? todo mundo queria fazer alguma coisa, aí, a gente fomos, nesse casarão foi meio mundo de mocinhas pra trabalhar, pra ela ensinar”, disse T7. “Elas produziam realmente pra ajudar em casa, os pais realmente não porque os pais eram maioria cortadores de cana, aí passavam o dia fora aí quando eles voltavam à noite eles faziam outro tipo de trabalho. Desfiar meia por exemplo, fazer bolsa. Não sei se vocês já viram… não tem umas bolsas de pão que vende na padaria? aquelas bolsas de pão não eram produzidas pelas grandes fábricas, elas eram produzidas pelas pessoas do interior principalmente”, contou-nos Risolange.
A cidade, hoje conhecida como “Terra do Tapete”, já possuía essa extensão em sua nomenclatura quando se tornou município. Este título se incorporou à cidade de forma indissociável. Muitas mulheres ajudaram a tecer a Lagoa do Carro como hoje a conhecemos e como ela se reconhece; Disse-nos T.8: “E só existe a terra do tapete porque existe as tapeceiras, se não existe não existia tapete. Terra do tapete porque quem faz é as tapeceiras”. A “Terra do Tapete”, é, na verdade, a “Terra das Tapeceiras”.
A Associação de Tapeceiras de Lagoa do Carro – ASTALC9, fundada em 1989, dois anos antes de Lagoa do Carro ser um município, tem sua história emaranhada com essa nova condição territorial de cidade. “Lagoa do Carro por causa da história de luta das mulheres, do quantitativo das mulheres, porque sempre foram muitas mulheres produzindo e a Associação deu essa força, né? Fez com o que a cidade tenha esse reconhecimento como terra do tapete”, contou-nos mais uma vez Risolange. Sob os esforços de Isabel Gonçalves, sócio-fundadora, e de outras mulheres, a Associação é um espaço de resistência e luta pelo desenvolvimento local e pelo direito das mulheres artesãs. Mantida pelas próprias tapeceiras, funciona de domingo a domingo, exibindo os tapetes que guardam a história de sobrevivência dessas mulheres. Está localizada à margem da PE-090, com vista pra rua que desagua na lagoa.
A lagoa que existe hoje, de acordo com os moradores, é artificial e está em um lugar diferente de onde o carro de boi caiu de verdade. Naturalmente, é um dos cartões postais da cidade. Nela, há a escultura de Jesus Cristo de braços abertos, pintado de branco, feita pelo artista Eraldo Ramos, que diz “pesar toneladas”. A escultura, muito disputada à tarde por passarinhos que a fazem de abrigo, tem o pôr-do-sol às suas costas. Esse momento costuma ser ainda musicado pelo som de centenas de passarinhos que disputam acolhimento numa árvore localizada em frente à lagoa.
As ruas de sua paisagem-centro são formadas por asfalto, paralelo e barro, e por casas conjugadas. A recorrência de varais de roupa a céu aberto parece um aviso da dissolução do limite entre os espaços da casa e o da cidade, nos fazendo acreditar que este pode ser, muitas vezes, inexistente.
No centro de Lagoa do Carro, também chamado pelos moradores de “rua”, ficam localizados os principais estabelecimentos comerciais, institucionais, as praças, a lagoa, a igreja. Contrastando com a paisagem verde dos sítios, fazendas e engenhos que fazem parte de seu território.
A Padroeira da cidade é Nossa Senhora da Soledade. Para contemplá-la e agradecer suas bençãos milhares de fiéis católicos fazem a tradicional procissão com sua imagem no andor, no início de fevereiro. Muitos devotos fazem essa caminhada com tijolos na cabeça como forma de pagar promessas. Um dia após a procissão há a entronização da imagem da padroeira na igreja que tem seu nome. O altar da igreja é recoberto pelo tapete feito por T.. que nos disse: “Eu fui pra ver meu tapete expor aos pés do altar, me gloriei demais, senti Jesus passeando por cima, indo e voltando, e todo mundo: ‘Quem foi esse tapete?’ Eu disse: ‘Esse tapete foi pelas minhas mãos’.” Em pouco tempo e com muito trabalho T. fez o tapete sob encomenda, nos servindo de exemplo, mais uma vez, que quem sustenta as histórias e cenários da cidade são as tapeceiras.
A Feira do Tapete também acontece anualmente na praça da cidade, reunida pelos esforços que fazem as tapeceiras para conseguir exibir e vender suas peças. Nesse dia homenageia-se as mestras artesãs mais antigas e que tiveram destaque na produção de tapetes em Lagoa do Carro.
A cidade é também morada do Museu da Cachaça, uma coleção pessoal que angariou para José Moisés de Moura, seu fundador, um lugar no Guiness Book, como maior colecionador de cachaça do mundo. O museu recebe visitas de pessoas de todo canto do mundo. Por outro lado, O Roncador, pequena queda d’água que se esconde dentro de um sítio particular, é a diversão dos moradores da cidade. O nome “Roncador” se refere a um barulho que alguns dizem ser ouvido no centro da cidade. Um ronco forte que se escuta quando a água passa com mais vazão; mas os moradores dizem que hoje quase não se escuta, dizem que antigamente se ouvia mais.
O centro tem o som das rádios. Seu alarde útil se espalha por bocas megafônicas com publicidades de mercadinhos, lanchonetes e outros estabelecimentos, intercaladas por músicas escolhidas por moradores e informações sobre eventos da cidade. Na “rua” também reverbera o som do galope dos cavalos, do cano de escape das motos e do carburador das kombis, que substituem os passos dos pés quando o deslocamento se mostra um pouco maior.
A memória da vida recente de Lagoa do Carro hoje parece algo como um cenário mágico. Num tempo, não muito distante, as mulheres bordavam seus tapetes em frente às suas casas. Nas calçadas, fugindo do calor, elas se reuniam em grandes ou pequenos grupos pra encher os tapetes de pontos e histórias. A temperatura elevada obrigava à reunião, e, por isso, a atividade do tapete fazia-se também com a pausa e o ritmo das palavras enredadas, que são matéria de outro tipo de lã. Quando não se tinha luz dos postes, esta vinha dos candeeiros acesos, testemunhas de longas noites de trabalho intenso. Hoje, apesar de termos passado alguns dias na cidade, não vimos esta cena antes tão recorrente. Conhecemos sua existência somente pelos relatos das mulheres, que puxam essas lembranças de algum fio solto de saudade. Muitas mulheres deixaram de fazer do tapete sua principal fonte de renda e migraram para outras áreas. São agora comerciantes, empregadas domésticas, trabalham com outras especifidades artesanais que existem na cidade. Algumas são aposentadas, e muitas desempregadas.
À noite, a cidade vai, aos poucos, se guardando. As brincadeiras e as caminhadas nas ruas e praças atualmente desconfiam um pouco mais da própria liberdade. A violência, aquele estrangeiro metropolitano, visita com alguma frequência a vida de Lagoa do Carro. É evidente, esse cuidado, em alguns estabelecimentos que têm grades por cortinas (que é feita do fio duro e inflexível do medo), como é o caso da barraca de seu Zé Barbeiro, que tem anotado dia, mês e ano as vezes em que foi assaltado.
Mas, apesar de tudo, ainda permanece um ar de calmaria, de olho no olho, de confiança, de conversa desabrida. Hoje com expediente diurno, as tapeceiras contam como era também sob as estrelas e a brisa macia da noite que teciam histórias. Numa manhã de domingo em que lá estivemos, uma mulher passou por nós com um tapete enrolado embaixo do braço. Paramos para pedir uma informação a ela; nos deu e seguiu o seu caminho. Na segunda-feira, a encontramos novamente. Chamava-se Maria. Esses dois encontros foram os únicos que tivemos com uma tapeceira transeunte, infelizmente. Mas, de fechada no primeiro encontro, logo se tornou doce – e ainda hoje nos manda mensagens de saudade e de bom dia. Felizmente.
A cidade contada aqui é a cidade que visitamos. Pra entendê-la e experimentá-la precisaríamos de uma vida. Risolange nos levou à sua rua de moradia por muitos anos, e é com a fala dela que termino as impressões sobre a cidade, a cidade que é contruída por memórias, por pessoas: “Eu gosto muito dessa coisa da rua, porque a rua não é só a rua pelas pedras, as ruas são as pessoas, são as pessoas que vão que vem, é o seu amor impresso que fica ali, então assim a rua é bem mais que o paralelepípedo, ela traz consigo as lembranças. Quando você coloca o pé na rua que você gosta muito você lembra de muita coisa”.